Letícia 20/11/2012Querido Pai:"Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas conseqüências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.”
É meio engraçado imaginar que Franz Kafka, considerado um dos três escritores mais importantes do século XX (os outros dois são Marcel Proust e James Joyce) foi uma pessoa doentiamente indecisa, sem autoconfiança e frágil. Características que de maneira alguma foram um empecilho para o notável escritor que deu origem a uma das expressões mais características e representativas da literatura, o termo “kafkiano”. Suas cartas são as mais ansiosas já escritas, mas sua eloquência e poder de metáfora são tão geniais que toda sua insegurança torna-se nossa insegurança, e a atmosfera sufocante e fantástica de sua obra vai além de uma simples influência autobiográfica. Kafka nos contém. Apesar de sua original e estranha sensibilidade, é muito fácil e provável ter empatia, embora muitas vezes ele nos faça sentir estranhos na nossa própria pele. Como se, de repente, você acordasse metamorfoseado num inseto.
Em novembro de 1919, o autor do famoso A Metamorfose, levou dez dias escrevendo essa carta, mas nunca a enviou. O que Kafka não contava é que seu amigo Max Brod iria descumprir a promessa de destruir todos os seus escritos. A carta recebeu o nome de Carta ao Pai e só foi publicada em 1950, numa reunião das obras do autor.
Costumo dizer que leio Kafka e passo mal. Carta ao Pai é particularmente difícil pra mim. É um daqueles textos que descrevem nosso conflito interno, mas longe de nos permitir uma visão mais serena do caso, nos deixam ainda mais impotentes. O autor faz uma longa análise de si mesmo, onde ele procura explicar seu fracasso através da difícil relação que teve com o pai. Ele não busca vingança e menos ainda uma reconciliação tardia. Seria humanamente impossível. Oprimido pela figura paterna, a alternativa que Kafka encontrou foi uma fuga para dentro de si, crescendo à sombra do pai por saber que não corresponderia às suas expectativas. Porém, ele reconhece as boas intenções do pai, e sabe que numa personalidade menos fraca e covarde a autoridade paterna teria sido menos traumática. E daí ele é invadido por um imenso sentimento de culpa que dá o tom angustiante do livro.
“Da sua poltrona você regia o mundo. Sua opinião era certa, todas as outras disparatadas, extravagantes, anormais. Tão grande era sua autoconfiança, que você não precisava de modo algum ser consequente, sem, no entanto deixar de ter razão. Podia também ser o caso de você não ter opinião alguma sobre um assunto, e, consequentemente, todas as opiniões possíveis relativas a ele precisavam ser sem exceção erradas. Você podia, por exemplo, xingar os tchecos, depois os alemães, depois os judeus, na verdade não sob este ou aquele aspecto, mas sob todos, e no final não sobrava mais ninguém além de você. Você assumia para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa.”
Fica bastante claro que o pai – um comerciante judeu, autoritário e rude – desperta no filho um conjunto de emoções conflitantes, que vão de revolta à mais profunda admiração. A capacidade de análise e argumentação do autor nos deixa abalados e surpreendidos, uma vez que ele antecipa todas as reações do pai e já responde à elas, numa escrita dolorosamente ágil. Você se sente completamente desconfortável e fascinado. Franz Kafka faz uma incômoda autópsia psicológica, e no fim da leitura nada é mais pungente que nosso próprio sentimento de impotência.
“Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de você; só que ela, apesar de imposta por você, corria na direção definida por mim. Mas como tudo isso era pouco! Só vale a pena falar a respeito porque aconteceu na minha vida, em qualquer outro lugar essa atividade não seria absolutamente notada, e mesmo assim porque dominava minha vida, na infância como pressentimento, mais tarde como esperança, mais tarde ainda como desespero, ditando-me – se se quiser, novamente de acordo com o seu figurino – minhas poucas e pequenas decisões.”
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