Thamiris.Treigher 30/09/2023
Que leitura intensa!
"Querido pai, tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. "
Assim começa "Carta ao pai" de Franz Kafka, e pelo trecho inicial já dá para ter a ideia da intensidade que é esse livro.
Escrita em 1919, Kafka destrincha toda a relação complicadíssima com seu pai, que desde a infância lhe provocava medo, insegurança, tristeza e diversos sentimentos negativos que cresceram e aumentaram com o passar dos anos. O autor o descreve como tirano, regente, rei e Deus. "Da tua poltrona, tu regias o mundo".
A vida de Kafka girou sempre em torno da relação com o pai, seja para agradar, para chamar atenção, para evitar conflitos e para buscar aprovação. Influenciou profundamente, e de forma muito tóxica, todas as áreas da sua vida, com seus sucessivos fracassos: saúde, trabalho, relacionamentos.
Até o fato de Kafka nunca ter casado e formado uma família se deve à relação com o pai. Ele confessa explicitamente ter feito de suas noivas um meio para se libertar do pai. Porém, essas relações nunca avançaram justamente por causa do pai, que criticava suas escolhas. Me parece que Kafka dispensou tanto sua energia nessa relação sugadora, que não sobrou nada para que vivesse bem em qualquer área da sua vida.
Kafka expõe suas mágoas, angústias feridas, sentimentos e dores advindas dessa relação. Apesar de ter tido a intenção se entregar a carta para seu pai, isso de fato nunca aconteceu. O motivo sempre será um mistério.
"Por que Kafka jamais entregou a Carta ao pai a seu destinatário, nunca ficou claro. Se por ventura achou que ele de fato não se interessaria por ela ou se passou a duvidar do valor documental do manuscrito, ficará sendo um mistério."
Um livro íntimo, forte, angustiante e comovente. Um trecho que acredito que resume perfeitamente a influência do pai durante sua vida é esse: "Às vezes imagino o mapa-múndi aberto e tu estendido transversalmente sobre ele. Então tenho a sensação de que para mim entrariam em consideração apenas as regiões que tu não cobres ou que não estão ao teu alcance. De acordo com a imagem que tenho de teu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito consoladoras".