Carla.Parreira 22/10/2023
Ao encontro da sombra
Eis um apanhado geral da leitura: O ego e a sombra desenvolvem-se aos pares, criando-se mutuamente a partir da mesma experiência de vida. Aquilo que não fazemos aflorar à consciência aparece em nossas vidas como destino. Muitas forças estão em jogo na formação da nossa sombra e, em última análise, determinam o que pode e o que não pode ser expresso. Pais, irmãos, professores, clérigos e amigos criam um ambiente complexo no qual aprendemos aquilo que representa um comportamento gentil, conveniente e moral, e aquilo que é mesquinho, vergonhoso e pecaminoso. Por exemplo, alguns permitem a expressão da raiva ou da agressividade; a maioria, não. Alguns permitem a sexualidade, a vulnerabilidade ou as emoções fortes; muitos, não. Alguns permitem a ambição financeira, a expressão artística ou o desenvolvimento intelectual; outros, não.
A sombra inclui a nossa porção infantil, nossos apegos emocionais e sintomas neuróticos, bem como nossos talentos e dons não desenvolvidos. A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não desenvolvidas e não expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros. As pessoas destituídas de senso de humor tem uma sombra muito reprimida. Em geral, é a sombra que ri das piadas. A sombra se destaca nas nossas opiniões negativas, sentimentos exagerados, atos impulsivos e não intencionais, na raiva exagerada com relação aos erros alheios e no sentimento de humilhação ou vergonha.
Quando somos dominados por fortes sentimentos de vergonha ou de raiva, ou quando descobrimos que nosso comportamento é inaceitável, é a sombra que está irrompendo de um modo inesperado. E em geral ela retrocede com igual velocidade; pois encontrar a sombra pode ser uma experiência assustadora e chocante para a nossa autoimagem. Se a negação permanecer, então, talvez nem sequer notemos que deixamos de notar. Encontrar a sombra pede uma desaceleração do ritmo da vida, pede que ouçamos as indicações do nosso corpo e nos concedamos tempo para estar a sós, a fim de podermos digerir as mensagens misteriosas do mundo oculto. O objetivo de encontrar a sombra é desenvolver um relacionamento progressivo com ela e expandir o nosso senso do eu alcançando o equilíbrio entre a unilateralidade das nossas atitudes conscientes e as nossas profundezas inconscientes. Um relacionamento correto com a sombra nos oferece um presente valioso: leva-nos ao reencontro de nossas potencialidades enterradas. Através do trabalho com a sombra podemos:
1. Chegar a uma autoaceitação mais genuína, baseada num conhecimento mais completo de quem realmente somos;
2. Desativar as emoções negativas que irrompem inesperadamente na nossa vida cotidiana;
3. Sentir-nos mais livres da culpa e da vergonha associadas aos nossos sentimentos e atos negativos;
4. Reconhecer as projeções que matizam as opiniões que formamos sobre os outros;
5. Curar nossos relacionamentos através de um autoexame mais honesto e de uma comunicação direta;
6. Usar a nossa imaginação criativa (através de sonhos, desenhos, escrita e rituais) para aceitar o nosso eu reprimido.
A medida que vamos crescendo, o eu reprimido transforma-se na pesada sacola que carregamos atrás das costas e que contém as nossas porções inaceitáveis. O self fica escondido na sombra; ela é a guardiã dos portais, a guardiã da entrada. O caminho para o self é através dela; por trás do aspecto escuro que ela representa está o aspecto da totalidade, e é só fazendo amizade com a sombra que ganhamos a amizade do self. Passamos nossa vida até os 20 anos decidindo quais as partes de nós mesmos que poremos na sacola e passamos o resto da vida tentando retirá-las de lá. Algumas vezes parece impossível recuperá-las como se a sacola estivesse lacrada. Mas a substância na sua sacola assume personalidade própria; ela não pode ser ignorada.
Quando colocamos uma parte de nós na sacola, essa parte regride. Retrocede ao barbarismo. Imagine um rapaz que lacra a sacola aos 20 e espera uns quinze ou vinte anos para reabri-la. O que ele irá encontrar? É triste, mas toda a sexualidade, selvageria, impulsividade, raiva e liberdade que ele colocou na sacola regrediram; não apenas seu temperamento se tornou primitivo como elas agora são hostis à pessoa que abre a sacola. Pode-se dizer que, na nossa cultura, a maioria dos homens coloca o seu lado feminino (a mulher interior) na sacola. Quando ele quer, lá pelos 35 ou 40 anos, entrar novamente em contato com o seu lado feminino, a mulher interior talvez lhe seja bastante hostil. Nesse meio tempo, ele está enfrentando a hostilidade das mulheres no mundo exterior.
A regra é: o lado de fora é um espelho do lado de dentro. É assim que as coisas são neste nosso mundo. E a mulher que queria ser aceita pela sua feminilidade e para isso guardou seu lado masculino (o homem interior) na sacola, talvez descubra, vinte anos mais tarde, que ele lhe é hostil. Talvez ele também seja insensível e brutal em suas críticas. Essa mulher estará em apuros. Viver com um homem hostil dará a ela alguém a quem censurar e aliviará a pressão, mas não resolverá o problema da sacola fechada. Nesse meio tempo, ela está propensa a uma dupla rejeição: a do homem interior e a do homem exterior. Existe muita dor nisso tudo.
Cada parte da nossa personalidade que não amamos tornar-se-á hostil a nós. Ela também pode distanciar-se de nós e iniciar uma revolta contra nós. Se não projetarmos, nunca conseguiremos estabelecer uma conexão com o mundo. As mulheres reclamam que o homem pega seu lado feminino ideal e o projeta sobre elas. Mas se não fizesse isso, como poderia ele sair da casa da mãe ou do apartamento de solteiro? A questão não é tanto o fato de projetarmos, mas sim por quanto tempo mantemos a projeção sobre o outro. Projeção sem contato pessoal é perigoso.
Quando colocamos muita coisa na nossa sacola particular, o resultado é nos sobrar pouca energia. Quanto maior a sacola, menor a energia. Algumas pessoas têm, por natureza, mais energia que outras; mas todos nós temos mais energia do que nos é possível usar. Para onde ela foi? Para o mar de lama da sacola. Um círculo vicioso inevitavelmente ocorre quando ficamos aprisionados a uma projeção de sombra (ou a uma projeção de animus ou de anima). Uma projeção sempre embaça a nossa visão da outra pessoa. Mesmo quando acontece de as qualidades ou defeitos projetados serem qualidades ou defeitos reais da outra pessoa, a reação afetiva que marca a projeção sugere que o complexo afetivo em nós embaça a nossa visão e interfere com a nossa capacidade de ver com objetividade e estabelecer relações de um modo humano. Quando ocorre uma projeção de sombra, não somos capazes de diferenciar entre a realidade da outra pessoa e nossos próprios complexos. Não conseguimos distinguir entre fato e fantasia. Não conseguimos ver onde começamos e onde o outro termina. Não conseguimos ver o outro; nem a nós mesmos.
Qualidades negativas que não nos incomodam de modo tão intenso ou que achamos relativamente fácil perdoar ? se é que precisamos perdoá-las ? em geral não pertencem à nossa sombra. A sombra é a experiência arquetípica do ?outro?, aquele que, por ser-nos estranho, é sempre suspeito. A sombra é o impulso arquetípico de buscar o bode expiatório, de buscar alguém para censurar e atacar a fim de nos vingarmos e nos justificarmos. A sombra é a experiência arquetípica do inimigo, a experiência da culpabilidade que sempre recai sobre o outro, pois estamos sob a ilusão de que conhecemos a nós mesmos e já trabalhamos adequadamente nossos próprios problemas. Em outras palavras, na medida em que é preciso que eu seja bom e justo, ele, ela ou eles tornam-se os receptáculos de todo o mal que deixo de reconhecer dentro de mim mesmo.
É de suma importância notar que as qualidades que foram reprimidas por serem incompatíveis com os ideais da persona e com os valores culturais gerais, talvez sejam fundamentais para a estrutura básica da personalidade; mas, por terem sido reprimidas, permanecerão primitivas e, portanto, negativas. Infelizmente, a repressão não elimina as qualidades ou impulsos, nem os impede de agir. Ela apenas os remove da consciência do ego; eles continuam a existir como complexos. Ao serem removidos da nossa visão, escapam da nossa supervisão e podem, assim, continuar a existir de modo incontido e destrutivo. Portanto, a sombra consiste em complexos e qualidades pessoais baseados em impulsos e padrões de comportamento que são uma inquestionável parte ?escura? da estrutura da personalidade. Na maioria dos casos, essas qualidades são facilmente observáveis pelas outras pessoas. Só nós mesmos não conseguimos vê-las. As qualidades da sombra formam, em geral, um agudo contraste com os ideais do ego e os esforços da vontade.
O reconhecimento da sombra pode acarretar efeitos marcantes sobre a personalidade consciente. A própria noção de que o mal que vemos na outra pessoa talvez esteja em nós mesmos, pode provocar choques de intensidade variada dependendo da força das nossas convicções éticas e morais. É preciso ânimo para não fugir ou ser esmagado pela visão da própria sombra; é preciso coragem para assumir a responsabilidade pelo próprio eu inferior. Quando esse choque parece quase impossível de ser suportado, o inconsciente geralmente exerce sua função compensatória e vem em nossa ajuda com uma visão construtiva da situação. Assim se dá porque a sombra, quando percebida, é uma fonte de renovação; o impulso novo e produtivo jamais nasce dos valores estabelecidos do ego.
Quando queremos ser o nosso ideal de perfeição e escondemos nossas autocondenações na mão fechada, os nossos defeitos escapolem entremeio aos nossos dedos. Então, é como se eles estivessem estampados na nossa testa. Quando nos recusamos a enfrentar a sombra, ou quando tentamos combatê-la com a força da nossa vontade, exclamando: ?Para trás, Satanás!?, estamos somente relegando essa energia para o inconsciente e dali ela exercerá seu poder de uma forma negativa, compulsiva e projetada. Então, nossas projeções transformam o mundo à nossa volta num ambiente que nos mostra a nossa própria face, mesmo que não a reconheçamos como nossa. Tornamo-nos cada vez mais isolados; em vez de uma relação real com o mundo à nossa volta, existe apenas uma relação ilusória, pois nos relacionamos, não com o mundo como ele é, mas sim com o ?mundo mau e perverso? que a projeção da nossa sombra nos mostra. O resultado é um estado de ser inflado e autoerótico.
Para proteger o seu próprio controle e soberania, o ego instintivamente oferece grande resistência ao confronto com a sombra; quando capta um vislumbre da sombra, a reação mais comum do ego é tentar eliminá-la. Mobilizamos a nossa vontade e decidimos, ?Não quero mais ser assim!?. E então vem o destruidor choque final, quando descobrimos que isso é impossível pelo menos em parte, por mais que tentemos. Pois a sombra representa padrões de sentimento e de comportamento autônomos e energeticamente carregados. A energia desses padrões não pode ser simplesmente detida por um ato da vontade. Torna-se necessária uma recanalização ou transformação. No entanto, essa tarefa exige a percepção e a aceitação da sombra como algo que não pode ser simplesmente eliminado.
A sombra precisa ter, de algum modo, em algum momento, em algum lugar, o seu lugar de expressão legítima. Ao confrontá-la, temos a escolha de quando, de como e de onde podemos permitir dar expressão às suas tendências dentro de um contexto construtivo. E quando não é possível refrear a expressão do seu lado negativo, podemos amortecer seu efeito através de um esforço consciente para acrescentar um elemento atenuante ou, ao menos, um pedido de desculpas. E quando não podemos (ou não devemos) nos abster de ferir, podemos pelo menos tentar fazê-lo com gentileza e estar prontos para arcar com as consequências. Os esforços para alcançar a bondade pura resultam numa pose ou numa autoilusão sobre a bondade. Isso desenvolve uma persona ? uma máscara de bondade vestida sobre o ego.
Quando a sombra é extremamente isolada ou reprimida, podemos vir a ter uma personalidade múltipla. Em todos os casos de personalidade múltipla, sempre podemos identificar claramente a sombra. Ela nem sempre é má ? só é diferente do ego. Jung estava certo quando disse que noventa por cento da sombra é ouro puro. Tudo o que foi reprimido (seja lá o que for) contém uma quantidade tremenda de energia, com um grande potencial positivo. Por isso a sombra, não importa quão perturbadora ela possa ser, não é intrinsecamente má. O ego, com sua recusa de introvisão e com sua recusa de aceitar o todo da personalidade, contribui muito mais para o mal do que a própria sombra.
A sombra tem má fama porque o ego projeta sua própria maldade sobre ela. A sombra coletiva é projetada no Diabo, mas isso também pode ser analisado de outro modo. No novo testamento está escrito que o Diabo é ?o pai de todas as mentiras?. A sombra nunca mente; é o ego que mente a respeito de seus motivos reais. O Diabo é apenas uma força maligna arquetípica. Na batalha decisiva, Deus está sempre do lado da sombra, não do lado do ego. Com todas as suas dificuldades, a sombra está mais próxima da fonte da criação. A integração da sombra sempre coincide com a dissolução da falsa persona.
A pessoa torna-se muito mais realista a respeito de si mesma, pois ver a verdade sobre a nossa própria natureza sempre tem efeitos muito salutares. Parar de mentir para nós mesmos a respeito de nós mesmos é a maior proteção que podemos ter contra o mal. O ego é o centro da consciência; o self é o centro da personalidade como um todo que inclui a consciência, o inconsciente e o ego. O self é, ao mesmo tempo, o todo e o centro. O ego é um pequeno círculo, completo em si mesmo, formado a partir do centro, mas contido no todo. Existe uma enorme diferença entre um ego forte e um ego egocêntrico; esse último é sempre fraco. A individuação, a obtenção do nosso potencial real, não pode ocorrer sem um ego forte.
Se viver a sombra não é a resposta, tampouco o é sua repressão; pois ambos os processos deixam a personalidade dividida, perdida na trama da unilateralidade. A questão fundamental é ampliar a consciência e sustentar equilibradamente a tensão dos opostos dentro de si. O problema da nossa dualidade jamais poderá ser resolvido no nível do ego; é um problema que não admite solução racional. Ou, em outras palavras: se sustentarmos conscientemente o fardo dos opostos na nossa natureza, os processos de cura secretos e irracionais que ocorrem no nosso inconsciente poderão agir em nosso benefício e trabalhar visando à síntese da personalidade. Esse processo irracional de cura, que encontra seu caminho através de obstáculos aparentemente intransponíveis, possui uma definida qualidade feminina. Quem afirma que os opostos ? como o ego e a sombra ? jamais podem unir-se é a mente masculina, racional e lógica. No entanto, o espírito feminino é capaz de encontrar uma síntese onde a lógica diz que nenhuma síntese pode ser encontrada.
Existem pelo menos cinco caminhos eficazes para a ?viagem interior? a fim de observarmos a composição da nossa sombra: (1) pedir que os outros nos digam como nos veem; (2) descobrir o conteúdo das nossas projeções; (3) examinar nossos ?lapsos? verbais e de comportamento e investigar o que realmente acontece quando somos vistos de modo diferente do que pretendíamos; (4) analisar nosso senso de humor e nossas identificações; e (5) estudar nossos sonhos, devaneios e fantasias.
Sempre que a nossa reação ao outro envolve emoção excessiva ou reação exagerada, podemos estar certos de que algo inconsciente foi estimulado e está sendo ativado. A paixão, por assim dizer, não passa de uma projeção positiva da nossa ?sombra dourada? que reluz e se reflete como ouro nos outros. O preço último da auto-obediência é a perda da totalidade. Quando uma mulher que é bem diferente de sua irmã pergunta a si mesma numa situação difícil, ?O que minha irmã faria??, ela está invocando suas habilidades não desenvolvidas e invisíveis, que são visíveis na outra. (Parece que isso foi escrito diretamente para mim!). O laço entre irmãos/irmãs do mesmo sexo talvez seja o mais tenso, o mais volátil e ambivalente que jamais conheceremos. Quando não existe uma irmã real, parecem sempre existir irmãs imaginárias ou irmãs substitutas. Mesmo quando existe uma irmã real, é frequente que existam figuras imaginárias ou substitutas, como se a irmã real não fosse adequada o bastante para carregar plenamente o arquétipo; por isso o arquétipo precisaria ser imaginado, personificado.
A primeira fase da vida psíquica se faz por meio da diferenciação, manifestando-se muitas vezes como hostilidade; mas a segunda fase é alcançada através da rendição e do amor. O interessante é que muito do desprezível e odiado na sombra poderia ser até certo ponto admirado e amado no nosso animus/anima ou numa pessoa externa do sexo oposto. Então temos a curiosa dicotomia de idealizar e detestar a mesma coisa. Alias, é normal em casais um incorporar, carregar e expressar a sombra do outro. Isso pode gerar uma transição de um problema intrapsíquico (ou seja, um problema dentro da mente de um indivíduo) para um conflito interpessoal (ou seja, uma dificuldade que duas pessoas enfrentam), ocorrendo então uma identificação projetiva. De modo geral, as projeções tendem a ser intercâmbios ? um ?comércio? de partes reprimidas do eu, que os dois membros do casal concordam em fazer. E, então, cada um deles vê no outro as coisas que não consegue perceber em si mesmo e luta, incessantemente, para mudá-las.
O corpo como sombra representa o corpo como couraça e expressa àquilo que é reprimido pelo ego. O masoquista, de um modo assombroso, enfrenta e harmoniza os maiores opostos da nossa existência: a dor e o prazer. O elemento demoníaco da sexualidade se mostra no fato de que é muito difícil experimentar e aceitar a atividade sexual apenas como ?prazer? ou como uma experiência agradável. Poucas pessoas conseguem ?simplesmente desfrutar? a sexualidade, como desfrutariam uma boa refeição. A ?teoria do copo d?água? ? a experiência sexual seria o equivalente a saciar a sede ? encontra muitos defensores, mas raras são as pessoas que a praticam por tempo mais longo.
Quando Jesus diz ?sede perfeitos, assim como vosso pai celeste é perfeito?, ele toma claro que não se trata da perfeição de reprimir a escuridão e, sim, da perfeição da totalidade integrada. Jesus fala do Pai celeste que deixa o sol brilhar igualmente sobre o bom e o mau, e faz a chuva cair igualmente sobre o justo e o injusto. Fala-se da chuva e do sol, não apenas do sol. Jesus enfatiza o fato de que Deus obviamente permite a interação de sombra e luz. Deus a aprova. A perfeição de Deus permite que as tensões trabalhem para se resolver, pois é justamente assim que as tensões são suprimidas.
Se vocês penetrarem profundamente nos sentimentos que envolvem o confronto com a sombra, verão que a sombra é vivenciada como uma terrível ameaça. Reconhecer ou aceitar a sombra equivale à morte. Ceder, um centímetro que seja, em tolerância, compaixão ou valor, ameaçará todo o edifício do ego. É claro que quanto mais nos enrijecemos e nos entrincheiramos em determinadas posturas e autoimagens, tanto mais ameaçadora se tomará a sombra. A repulsa geralmente esconde um medo muito profundo: o medo de vermos aniquilado o ?eu? que conhecemos. Por isso o desapego ao eu-ego é uma maneira de liberar a sombra e libertar-se de conflitos. Assim como o Criador é uma totalidade, também a sua Criatura, Seu filho, deve ser uma totalidade. Nada pode suprimir o conceito da totalidade divina. Mas, sem que ninguém o percebesse, ocorreu uma cisão nessa totalidade; dela emergiu um reino de luz e um reino de trevas.
A perfeição implica em saber que não há nenhum mal na nossa imperfeição, pois esta é a natural contraparte ou ponto de equilíbrio necessário. O mal só toma a forma de mal quando assim o julgamos de modo preconceituoso e equivocado. A individuação ? o processo de uma pessoa tomar-se toda e única ? tem como objetivo abraçar simultaneamente a luz e as trevas para criar um relacionamento construtivo entre o ego e o self (nosso símbolo pessoal da totalidade individual). A cura da sombra é uma questão de amor. Até onde poderia o nosso amor estender-se às partes quebradas e arruinadas de nós mesmos, às nossas partes repulsivas e perversas? Quanta caridade e compaixão nós sentimos pelas nossas próprias fraquezas e doenças? Como poderíamos construir uma sociedade interior baseada no princípio do amor, reservando um lugar para todos?
Amar a si mesmo não é fácil, pois significa amar todas as partes de si mesmo, incluindo a sombra, na qual somos tão inferiores e tão inaceitáveis socialmente. E assim a cura é um paradoxo que exige dois fatores incomensuráveis: primeiro, o reconhecimento moral de que essas partes de mim são opressivas e intoleráveis, e precisam mudar; e segundo, o amor que as aceita exatamente como elas são, com alegria e para sempre. Lutamos arduamente e desistimos; julgamos com severidade e aceitamos com alegria. Se nós fugimos do mal em nós mesmos, corremos um sério risco. Todo o mal é uma vitalidade potencial que necessita de transformação. Viver sem o potencial criativo da nossa própria negatividade equivale a ser um anjinho de cartolina.
Nas nossas neuroses e doenças físicas estão encaixados valores e padrões inconscientes essenciais para a totalidade. Para podermos descobrir seu significado, precisamos nos aliar às nossas doenças. Isso quer dizer que devemos prestar a mais cuidadosa atenção aos sintomas, sem formular hipóteses a priori ou tentar mudá-los. Um aspecto fundamental dessa abordagem é a ideia de que o que está acontecendo é certo, de algum modo, e devemos ajudá-lo. Os opostos se unem em um terceiro, um filho de ambos, um símbolo de transcendência. O preto e o branco se unem no cinza. A integração da sombra e o consequente crescimento da consciência exigirão tempo. O processo acontecerá em estágios. A sombra é o resto de quem somos. Para cada virtude que adotamos, seu oposto precisou permanecer sem desenvolvimento, inconsciente. Embora tenhamos o direito de considerar o assassino, o ladrão, o adúltero, o terrorista, a prostituta, o blasfemador, o traficante de drogas ou o racista que existem dentro de nós como sinistros e maus, não temos o direito de considerá-los como absolutamente não existentes dentro de nós. Não podemos negar essa possibilidade; não podemos ?esquecer o nosso rabo?.
A primeira metade da vida destina-se ao crescimento e diferenciação da sombra. Toda a segunda metade da vida destina-se à integração, cada vez maior, da sombra. Abrimo-nos para o outro ? para o estranho, o fraco, o pecador, o desprezado ? e apenas pelo ato de incluí-lo nós o transmutamos. Ao fazê-lo, caminhamos em direção à totalidade. Se o primeiro passo para ?curar? as projeções da sombra consiste em assumir a responsabilidade pelas nossas projeções, então o segundo passo consistirá simplesmente em reverter a direção das nossas projeções e fazer aos outros, com toda a gentileza, aquilo que até agora estivemos fazendo a nós mesmos com toda a crueldade. Assim sendo, devemos trocar as frases clichês. Por exemplo: ?O mundo me rejeita? transforma-se em ?Eu rejeito, pelo menos neste instante, todo esse maldito mundo!?. A frase ?Meus pais querem que eu estude? transforma-se em ?Eu quero estudar!?. A frase ?Minha pobre mãezinha precisa de mim? transforma-se em ?Eu quero ficar próximo de minha mãe!?. A frase ?Tenho medo de ser abandonado por todos? transforma-se em ?Danem-se todos, não dou bola para ninguém!?. A frase ?Todo mundo me olha de maneira crítica? transforma-se em ?Eu tenho interesse em dar uma opinião crítica sobre todo mundo?. A sombra sempre tem a última palavra; pois ela força a entrada, na nossa consciência, da ansiedade, da culpa, do medo e da depressão.
Parece que quase todos nós sentimos a maior relutância em confrontar nossos opostos, por medo de sermos subjugados por eles. No entanto, as coisas se passam exatamente do modo inverso: só acabamos por seguir os ditames da sombra, contra a nossa vontade, quando a nossa sombra é inconsciente. Para podermos tomar uma decisão válida ou fazer uma escolha segura, precisamos estar plenamente conscientes das ?duas metades?, de ambos os lados, dos dois polos opostos; sempre que um deles é inconsciente, o mais provável é que a nossa decisão não seja sábia. Em todas as áreas da vida psíquica precisamos confrontar nossos opostos e retomá-los ? e isso não implica, necessariamente, agir sobre eles: só implica estar consciente deles.
Desenhar a sombra é uma experiência criativa de riqueza infinita. Uma percepção consciente da sombra pode dissolver o poder inconsciente da sombra sobre nossas escolhas. Esta é uma oportunidade de ouro para percebermos a sombra: o ouro está na percepção consciente da escolha, que se toma possível pela mediação da tensão entre a nossa sombra e o nosso ego. Quaisquer que sejam os sintomas no nível emocional ? culpa, medo, ansiedade ou depressão ? todos eles, a rigor, são o resultado do meu ato de beliscar ?mentalmente? a mim mesmo. A razão pela qual o sintoma não desaparece é que tentamos fazê-lo desaparecer. Enquanto combatermos um sintoma, ele se agravará. Desse modo, a solução do problema não é livrar-se do sintoma e, sim, tentar aumentá-lo, de modo deliberado e consciente, para poder senti-lo plenamente! Se você está deprimido, tente ficar mais deprimido. Se você está tenso, fique mais tenso ainda. Desse modo estamos fazendo de modo consciente aquilo que até então fazíamos de modo inconsciente.
O estado natural do ser é a paz, a felicidade, a plenitude e a perfeição. Qualquer emoção oposta a isso deve ser vivenciada com a certeza de que, uma vez saciado o fluxo da energia contrária, a naturalidade essencial de ser assumirá novamente o controle. Mas se criarmos um embate ou uma repressão, a energia maléfica ficará estagnada em nós e bloqueará todo o nosso fluxo energético positivo. Portanto, devemos ampliar de modo deliberado e consciente qualquer um dos sintomas emocionais até alcançar o ponto em que percebemos, conscientemente, que somos nós quem os estamos produzindo e quem sempre os produzimos. A consequência desse processo é que, pela primeira vez e de uma maneira espontânea, estaremos livres para deixar de produzi-los. O processo é: quando você conseguir se sentir mais culpado, vai lhe ocorrer que você também consegue se sentir menos culpado ? mas de uma maneira admiravelmente espontânea. Se você é livre para se sentir deprimido, você também é livre para não se sentir deprimido. O mais admirável em relação a todo esse processo é que, quando temos a coragem de olhar para as nossas partes reprimidas, elas mudam. O leão enfurecido lambe o nosso rosto. Ele não precisa dominar a nossa personalidade; ele só precisa ser respeitado, ouvido, ou seja, ter permissão para se expressar.