Hugo R 16/10/2011
Errar para ser
“A existência precede a essência”. Com a máxima, Sartre deu o pontapé inicial no movimento filosófico denominado existencialismo. Para o pensador francês, a existência mortal do homem precede a sua formação como persona, por intermédio das experiências modeladoras que, em vida, delinearão o ser humano. Por isso, entre os seres racionais, nada que não é, ou mesmo, que não exista, não pode, de forma alguma, ser. Retrato anterior à tese humanista de Jean-Paul Sartre tem-se com a publicação de O Cavaleiro Inexistente, em 1959, por Italo Calvino.
Nascido numa viagem dos pais cientistas a Cuba, Italo Giovanni Calvino Mameli (1923-1985) destacou-se logo como um dos grandes escritores italianos da geração do séc. XX. Tendo iniciado os estudos na Faculdade de Agronomia de Turim, em 1941, logo os abandona em prol do engajamento político, que o levara a se juntar a Resistência Italiana contra os nazistas. Mais tarde, foram tais acontecimentos que delinearam a vasta produção ficcional do autor, com livros como As Cidades Invisíveis, publicado originalmente em 1972, Se um Viajante numa Noite de Inverno, de 1979, e O Cavaleiro Inexistente, de 1959, caricato e irônico retrato de um romance de cavalaria.
Nesta publicação, Italo Calvino alia uma prosa lírica com um sarcasmo zombeteiro para dar voz às peripécias emaranhadas nos enredos macroscópico e outros microscópicos do romance de apenas 136 páginas. Dando nome à narrativa, exemplarmente fardado com uma límpida armadura branca, metódico, disciplinado, perfeito, Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez apresenta-se junto às tropas de Carlos Magno, como era de praxe a todo soldado. Ao contrário dos outros cavaleiros, porém, a bênção e a maldição do perfeccionismo de Agilulfo são justificadas por sua inexistência. Tais atributos que tanto angustiam o cavaleiro, no entanto, são os mesmos que o fazem cobiçado pela guerreira Bradamante, e invejado pelo jovem Rambaldo.
À procura da honra, Agilulfo se engaja numa jornada defendendo os títulos e a posição conquistados de uma acusação feita por Torresmundo, seguido por Bradamante, ansiosa pelo amor de um “não-ser”, e Rambaldo, batalhando pelo coração da guerreira. É assim que, na “cavalgante” narrativa, os personagens, confrontam o futuro com suas incessantes buscas, seus desejos e incertezas.
Essa carroça metafórica que rende um passeio pelo avesso do universo medieval é conduzida pela irmã Teodora, narradora e monja a quem foi designada a incumbência de escrever, como forma de penitência. Logo mais, porém, o ingênuo leitor descobrirá que ela não escreve por consideração ao amor cristão, custeando com o labor de sua pena a vida eterna. Pelo contrário, o intuito de Teodora, ou antes, Bradamente, é a penitência paga pela paixão ao inexistente em desacato ao amor tátil de Rambaldo. A narradora, por fim, agora paga o tempo da espera para alcançar seu salvador, o jovem cujos desejos foram outrora renegados, ansiosa e com a crença de que “se bem que, quando se chega ao ponto [o início do fim, o ponto final] aparece o salvador, sempre ele”.
Nesse tufão de identidades múltiplas, característica principal da flexibilidade e da intensa conexão de Gurdulu – escudeiro de Agilulfo – com o meio em que vive, assalta o cavaleiro inexistente, o que ocorre quando Agilulfo tem a armadura metaforicamente suja por um suposto erro, de modo que, assim, sucede a metamorfose do cavaleiro, que se esvai, liberto de prisão de sua armadura. Consequentemente, descobre no provérbio “errar é humano”, o aprendizado que anula sua condição inexistente, isto é, parafraseando Sartre, aquilo que passa a temperá-lo com as qualidades, defeitos e virtudes, característicos próprios daquele que existe e, por isso, simplesmente é.