Jacque Spotto 15/10/2021
Leite Derramado como o próprio título sugere vem da famosa expressão: "Chorar pelo leite derramado" que é quando a pessoa reclama de algo ruim que aconteceu mas que de alguma forma há um certo arrependimento de não ter feito diferente. E aqui no livro quem "chora pelo leite derramado" é o protagonista Eulálio, um centenário que está hospitalizado, ao que parece em um hospital público, e tenta contar para as enfermeiras, filha ou qualquer pessoa que ele acredita estar ouvindo, a história de
sua vida e de sua família.
É narrado em primeira pessoa pelo Eulálio, que já não é um narrador confiável não só por narrar do seu ponto de vista, mas também porque ele tem lapsos de memória, confunde pessoas, reconta histórias de formas diferentes, o que nos leva a pensar que tudo pode ser verdade, ou apenas alguns fragmentos, ou também pode ser que nada tenha sido real, somente uma alucinação do personagem.
A narrativa de Eulálio é sobre sua família, típica da "elite carioca", onde viveu sua infância como filho único de um casal de família renomada, o pai um político também chamado Eulálio e sua mãe uma dama da sociedade carioca. A todo momento Eulálio engrandece o sobrenome da família "Assumpção", como a única e verdadeira herança que uma família pode passar de geração para geração.
Interessante que há um certo panorama de sua genealogia desde seu tataravô até seu tataraneto e todos eles levam seu nome Eulálio, até mesmo sua filha, da forma feminina Maria Eulália, uma clara maneira de não deixar que suas raízes se percam.
Matilde era a esposa de Eulálio, e dela é a que ele mais se lembra, uma moça que era filha também de um político, mas fora do casamento, Matilde era diferente de suas irmãs porque não era da mesma mãe
e era negra, mas Eulálio em várias de suas descrições sempre fala que ela era "moreninha", uma forma de clareamento da própria esposa. Em outras falas do narrador percebe-se essa sua tentativa.
"Minha mãe era de outro século, em certa ocasião chegou a me perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele quase castanha, era a mais moreninha de sete irmãs..." (p.29)
E em Matilde que se encontra um dos maiores arrependimentos de Eulálio, em momento algum sentia que ela pertencia a forma de vida que viviam, tentava mudá-la a se tornar como sua mãe e Matilde era totalmente diferente, era alegre, gostava de dançar músicas populares, conversava com todos, o que deixava o marido com um ciúme doentio, sua atitude me lembrou o próprio Bentinho de Dom Casmurro. Eulálio chegava a formular histórias de como Matilde o estaria traindo sem nem mesmo ter provas disso.
Há vários acontecimentos referente aos seus pais, seu casamento e a fortuna da família que foi se desintegrando após a morte do pai, a típica decadência de uma família rica e tradicional. E essa forma de contar a sua história talvez seja uma maneira de Eulálio não deixar morrer o que ele acredita ter sido
um dos melhores anos de sua vida, quando havia dinheiro e sua esposa. Uma certa volta ao passado que ele considera ser seu lugar idílico.
Toda essa narrativa de Eulálio e sua busca da memória do lugar onde se sentia seguro e feliz, com algumas infelicidades, é claro. Mostra como nos forçamos a buscar lembranças que nos faz hoje o que somos e como também a memória é um campo indecifrável, como um grande quarto de gavetas que às vezes um arquivo complementa o outro, mas no momento não associamos de imediato. Há uma passagem no livro que Eulálio compra um vestido para Matilde e ele guarda na memória as mãos da
vendedora, e quando ele reconta esse momento ele destrava uma memória de ter visto aquelas mesmas mãos entregando um vestido para seu pai, um presente que ele daria a uma amante, e aí, nesse momento, quase 80 anos depois, ele descobre o motivo da morte do pai.
"A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas." (p. 41)
Leite derramado é um livro que nos deixa com raiva do protagonista pela forma de como ele trata a esposa e as pessoas que ele julga serem inferiores a ele, mas também me peguei em certos momentos com um sentimento de pena de Eulálio, um velho que as pessoas já não dão tanta atenção, uma pessoa presa ao passado a um momento em que ele poderia fazer tudo diferente e não fez.
Pessoalmente adorei a leitura deste livro, espero que o próximo que escolher de Chico me prenda como esse aqui foi capaz de fazer.
Espero que gostem da dica? Leiam Chico Buarque! ;)