Mel 28/10/2013
Maya me bateu
Sempre vi muita gente com Isabel Allende nas mãos, mas nunca dei bolas. De uns tempos pra cá, minha predileção por autores latinos me levou até ela. Meu contato havia sido muito pequeno e evasivo, através de uma adaptação literária para as telonas, cujo filme com a divina Meryl Streep dispensa apresentações. Um dia me joguei sem pensar nas promoções de uma livraria, que cometeu a blasfêmia de vender vários dos seus títulos por 50% de desconto – bom pra mim, ruim para quem escreveu – e foi assim que “O Caderno de Maya” veio parar nas minhas mãos.
Não sou parâmetro no quesito “tempo de leitura”, porque as adversidades “cotidiano-proletárias” me distraem e desviam a minha atenção das páginas de um livro. Durante a semana, no transporte público, meu herói é aquele que depois de tudo o que passa ainda consegue se mover segurando um livro nas mãos. Sou incapaz disso. Só que foi impossível não largar dele, Dona Allende, a senhora conseguiu ganhar do facebook e de todo o resto e é por isso que agora eu tiro meu chapéu e me reverencio. Você É uma diva.
Maya Vidal se apresenta no começo da história, dizendo que está se refugiando em Chiloé, o “cú do mundo” – e que a sua avó (sua Nini), excêntrica, enérgica e lunática (me apaixonei desde o princípio por esta avó) lhe deu um caderno sugerindo a Maya que escrevesse suas memórias, como eu e você fazemos ou fazíamos tantas vezes. Maya não levou isso muito à sério no começo, mas como depois chocou-se com uma tremenda falta de sacanagem em forma de tédio ali onde se foi achar, se viu obrigada a se refugiar nas páginas do caderno presenteado pela avó. E é a este caderno que você terá acesso, permeando por dois fios condutores: o passado e o presente.
Nas duas narrativas, Maya relembra o passado desde quando seus avós se conheceram e como e por que motivo foi criada por eles, até que um fato dramático – o primeiro que desencadeou uma fileira infindável de outros na vida de Maya – a conduziu a o verdadeiro inferno degradante e decadente por onde ela se enfiou na sequência. Entre minutos de lucidez e de resignação ao que estava se tornando dia após dia pelo andar da carruagem, ela se dividia entre saudade, nostalgia, lançando-se a todo o tipo de vícios, todo o tipo de drogas , breves momentos de abstinência e muitos de autodegradação. Chegou ao ponto de se sentir indigna de pedir ajuda, de fazer um simples telefonema e dizer: “Oi, Nini, estou aqui, por favor venha me buscar”. Como a esta altura vocês já devem imaginar, Maya sofreu todo o tipo de violência física e psicológica e quando os outros não faziam isto com ela, ela própria se fazia ou escolhia submeter-se a. Então entende-se porque a autora declarou na contra-capa que Maya a tinha feito sofrer mais do que qualquer outra de suas personagens. Em alguns momentos ela lhe teria dado uns tapas e em outros a envolvido em um abraço, para protegê-la do mundo e de seu coração IMPRUDENTE. Esta imprudência acabou por levá-la a dar uma volta no inferno, no esgoto, no meio de traficantes e bandidos de quilate federal. Afetuou -se a um garoto de 12 anos, há muito tempo já condenado pelo vício sem retorno e que acaba salvando sua vida por mais de uma vez, até que ela caia nas mãos de um grupo de religiosas tão tementes a Deus quanto coerentes e que colocam suas próprias vidas em risco para abrigar uma garota de 19 anos suja até o pescoço. Abrigam-na, protegem-na, deixam-na chiliquenta na cama no meio de mil crises abstinentes até que se consiga uma condição menos degradante possível e que se possa avisar uma avó sem correr o risco de lhe causar um susto mortal.
Essa avó some com essa neta. E é assim que se entende por que ela foi parar num “cú de mundo que se transformou, dia após dia, no olho da galáxia” e de onde ela aprendeu a olhar através da calmaria e do silêncio, para dentro de si mesma e ser verdadeiramente e simplesmente a Maya: uma garota de quase 20 anos que não tem nenhuma pretensão de deletar o seu passado, mas antes aprender a conviver com ele e vislumbrar um futuro de amor, afeto e a liberdade que tanto merece.
Maya me deu sucessivos socos no estômago (inclusive ali, no meio do metrô). Tanto ela quanto a majestosa escrita da Dona Allende te fazem se jogar de cabeça no livro de pouco mais de 400 páginas e se perder (ou se encontrar) em uma leitura deliciosa, colocando-se em contato em primeira pessoa com uma personagem rica porque humana, verdadeira, latente, visceral. Quando você se percebe apegado à ela, percebe também como vale a pena ser exatamente quem você é, e como é, a que usar máscaras perfeitas e lindas. Não é de perfeição que o mundo precisa, nem é beleza que a gente busca. A gente busca o amor. E a gente também se perde muito fácil por causa dele.
site: http://losliteratos.com/2013/10/27/resenha-o-caderno-de-maya-isabel-allende/