spoiler visualizarbeatriz 14/05/2021
O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo é um livro emblemático. A obra nos traz o retrato de um personagem excêntrico, marcado por manias, teimosia, orgulho e fragilidades. O Sr. Napumoceno deixa seu testamento de centenas de páginas de modo curioso, contando, com até muitos detalhes, acontecimentos de sua vida e justificando a distribuição de seus bens. Ao seu sobrinho, que trabalhava com ele diariamente, deixa apenas um velho pardieiro; à filha que teve com sua secretária, e que até então ninguém sabia de sua existência, deixa a maior soma de sua fortuna.
Esse livro me fez sentir o misto de sentimentos que não sei explicar muito bem, e por isso mesmo descrevo a obra como emblemática. O autor escreve um personagem que é, sobretudo, humano. Sr. Napumoceno é um homem orgulhoso, coloca suas opiniões acima dos outros; seus atos de bondade são um mero reflexo da culpa que sente; é metódico em tudo que faz, na sua higiene bucal, nos seus relacionamentos amorosos até na escrita de seu testamento. Ele é, para mim, um retrato muito claro do “cidadão de bem”, que vive através de sua própria moral distorcida.
O que me toca negativamente nessa obra é a cena em que é contado sobre como o Sr. Napumoceno fez sua filha em seu escritório. Primeiramente, o Sr. Napumoceno tem questões um tanto quanto freudianas com saias verdes, o que me incomodou (e também me deixou instigada). Mas o principal problema está no fato de que o ocorrido foi um abuso, a descrição daquele momento me deixou muito incomodada justamente pois parecia não ser desejo dela estar ali; e esse fato não é discutido em nenhum momento posterior da obra.
O livro, para mim, fica um pouco melhor no final. De maneira geral, não consigo ignorar os fatores negativos supracitados e o fato de que o personagem é uma representação de algo que eu não gosto. Mas uma coisa que eu gosto é como a gente (ou talvez só eu) passamos a obra inteira vendo o Sr. Napumoceno como esse personagem rígido, metódico, orgulhoso, etc., para nas últimas páginas nos depararmos com uma pessoa real, que está vivendo as dores da velhice e da solidão. E acredito que a vida seja exatamente sobre isso, somos ruins, erramos, mas também somos frágeis, e sofremos.