Marie 22/12/2020
Auto imagem e política externa
O Kissinger é diplomata estadunidense, então obviamente é escrito sob o ponto de vista ocidental, mas ainda assim o livro é sensacional e cobre um período desde o Império Chinês até o final do governo de Hu Jintao, em 2011, abordando vários temas.
É muito interessante ver como as nuances vão mudando não só com a conjuntura política doméstica e internacional, mas de acordo com o ritmo da própria auto imagem chinesa. O livro começa com a China Imperial sofrendo um choque de identidade. Até então, era natural para ela que Estados menores prestassem tributos e absorvessem sua cultura.
Ocorreu uma rusga entre duas dimensões da identidade: o ser si mesmo e o ser reconhecido pelo outro. Mesmo que a China agisse sendo si mesma, tendo uma cultura própria, privilegiando a si mesma, isso não bastou para que se mantivesse como país central de sua ordem mundial. Faltou a categoria do reconhecimento. Quando os países ocidentais se recusaram a fazer coro a sua auto imagem de centro sistêmico e derrubaram a força esse preceito, isso trouxe cicatrizes profundas que geraram uma nova prerrogativa de Estado.
Mesmo sofrendo diversas guerras civis e períodos de caos durante sua história, até então cada um desses períodos era visto como uma descontinuidade, e os períodos de paz como o retorno à normalidade. Existia uma continuidade no sentido de que cada nova dinastia retomava os preceitos da anterior. Mas Mao, ao adotar o conceito de revolução contínua, descreveu um novo destino para o povo chinês.
Tentou romper com a tradição, por interpretar que o confucionismo abrira brecha para a humilhação da China. Mas a tradição não é simplesmente o conjunto de coisas que existem desde tempos remotos, e sim a própria passagem de valores de geração em geração. Não conseguiu romper com a tradição, mas conseguiu fazer com que a China jogasse um complicado jogo no âmbito internacional, ao usar a desconfiança que as superpotências da ordem bipolar tinham uma pela outra para desafiar a ambas. Criou uma frente de países não alinhados, manteve relacionamentos diplomáticos por debaixo dos panos, e com isso a China terminou no rol dos países que mantiveram sua integridade ao final da Guerra Fria.
Com o fim do mundo bipolar, o país precisava de uma nova estratégia para a manutenção da sua soberania em meio a ordem liberal. As reformas modernizantes de Deng Xiaoping foram necessárias para trazer esse novo fôlego. Com o novo parâmetro de pós-soberania no sistema internacional, a China enfrenta conflitos, sanções e demais interferências em seus assuntos internos, mas ainda assim passa a poder exigir um tratamento de igual para igual por ter adquirido poder de fato para tal. Hu Jintao, chegando ao poder com a China já na condição de grande potência, retorna ao confucionismo, ao defender a harmonia como princípio doméstico e exterior.
É interessante notar o retorno do Confucionismo quando ela volta a ter poder. Quase como se precisasse de uma época de ruptura para elevar sua moral, e depois retornar à sua eternidade. A identidade de um povo não é algo rígido e pétreo, mas uma construção e reencarnação de valores através de homens que vivem em seus próprios tempos históricos. Desde 2011, Confucio e Mao simbolicamente descansam próximos, na praça Tiananmen.