Mariana 29/06/2019o caos é uma ordem por decifrarO Homem Duplicado trata de um personagem curioso chamado Tertuliano Máximo Afonso, um homem melancólico, medíocre, e como diz Saramago, ensimesmado. Ele é um professor de história que leva uma vida pacata, desmotivado com sua rotina imutável. Em um belo dia, Tertuliano assiste um filme e descobre que existe um ator IGUAL a ele: na aparência física, nos gestos e até mesmo na idade. A partir disso ele entra num estado quase paranoico de investigação, para descobrir quem é esta cópia e o que faz ela no mundo.
No livro, um dos importantes conflitos entre os personagens é a tentativa de descobrir quem é a cópia do outro, isto é, quem veio primeiro. E essa possível perda do individualismo parece perturbar bastante os duplicados. Por que a perda da construção do nosso "eu" nos assusta tanto? No enredo, Saramago faz este conflito ultrapassar os limites do absurdo, expondo um questionamento: o que é necessário para que duas pessoas sejam realmente idênticas? Na busca por uma resposta, entre os personagens acontecem diálogos cheios de significado, rancores e atitudes motivadas por ego masculino (que me incomodaram muito).
"Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio."
Quanto à escrita em si, uma das coisas mais incríveis que eu aproveitei nesse livro foi o narrador. Saramago faz referências a sua própria ação de narrar que são muito cômicas, zoa os personagens e suas ações desacertadas (como a ação da mãe de Tertuliano em dar ao filho um nome esquisito assim), além de brincar com o ridículo da vida humana. Também faz pausas na história pra refletir sobre linguagem, palavras e os dilemas comunicação.
"...aquelas três palavras, Não Teve História, empregam-se quando há urgência em passar ao episódio seguinte ou quando, por exemplo, não se sabe muito bem que fazer com os pensamentos que a personagem está a ter por sua própria conta"
Em especial, adorei os diálogos entre Tertuliano e o personagem do Senso Comum. Em momentos de desastre ou tragédia, esse tal conselheiro aparecia, personificando o Senso Comum com letra maiúscula e corpo de gente.
"O papel do senso comum na história da vossa espécie nunca foi além de aconselhar cautela e caldos de galinha, principalmente nos casos em que a estupidez já tomou a palavra e ameaça tomar as rédeas da ação."
Para fechar minha opinião sobre o livro, creio que em certo ponto a enrolação me cansou (Saramago dá voltas e voltas), mas no fim foi uma leitura muito diferente. A princípio me pareceu um romance novelesco, com drama e relações humanas, mas a mensagem final da história vai muito além disso. A reflexão que norteia todo o romance é sobre IDENTIDADE. Paradoxalmente, buscamos a construção de uma identidade própria, mas nos igualamos cada vez mais uns aos outros ao suprimir diferenças e estabelecer padrões restritos. Somos únicos no mundo? O que falta para sermos cópias?
Saramago não te deixa perceber o que ele quer dizer até a última linha do livro. Nobel da Literatura não é à toa né?
"Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisaríamos para nos entender uns aos outros."