João Moreno 12/01/2017Mais Crônica que Resenha: Breve História com Saramago
(Atualização IX – Projeto “Evite o Emburrecimento durante às Férias Acadêmicas”)
“(...) e ele disse que não muito obrigado, e por ter agradecido chorou ainda mais, foi como se lhe tivessem vindo pôr uma mão no ombro e lhe dissessem, Tenha paciência, com o tempo o seu desgosto há-de-passar, é verdade, com o tempo tudo passa, mas há casos em que o tempo se demora a dar tempo para que a dor se canse, e casos houve e haverá, felizmente mais raros, em que nem a dor se cansou nem o tempo passou”. (Pág.267).
Meu relacionamento com Saramago é de longa data: escritor português, ateu e jornalista, já me era familiar muito antes de conhecer-lhe verdadeiramente às obras.
Prêmio Nobel em 1998 - e durante tempos a grandiosidade do que isto representava não atingir-me-ia - morreu quase centenário: escritor que escrevia em português, mas um português distante com origem portuguesa.
Ainda: uma de suas Magnum Opus fora adaptada aos cinemas: Ensaio sobre a Cegueira, sob direção do brasileiro Fernando Meirelles (Cidade de Deus), tornando-nos mais sensíveis a sua existência.
Acabou-se aí nossa familiaridade e percebam vocês: não passávamos-nos de estranhos (assim como os são os mesmos rostos conhecidos de um ambiente qualquer e rotineiramente frequentado).
Em 2015 veio-me a oportunidade: a sinopse de As Intermitências da Morte sempre me encantara, e desde um ano antes, este estava a tomar poeira em uma humilde coleção ambiciosamente chamada Biblioteca Particular.
Livros em mãos e algumas poucas linhas lidas e o estranhamento. E qual foi a minha surpresa ao descobrir numa letra minúscula, grifado em itálico:
“Por desejo do autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal”. (Pág.4).
Abandonei-o de imediato, afinal, como viria a descobrir em anos:
“Tanto é o que precisamos de lançar culpas a algo distante quando o que nos faltou foi a coragem de encarar o que estava a nossa frente”. (Pág.9).
As palavras não poderiam ser tão perfeitas – e até o encaixe dessa frase na narrativa foi acidental - por fim, rendi-me às suas linhas, fui tomado de assaltado por seu texto saramaguiano:
sa·ra·ma·gui·a·no
([José] Saramago, .antropônimo + -iano)
adjetivo
1. Relativo a José Saramago (1922-2010), escritor português, à sua obra ou ao seu estilo (ex.: personagens saramaguianas).
adjetivo e substantivo masculino
Que ou quem admira ou se dedica ao estudo e à investigação da obra de José Saramago.
Superei as dificuldades impostas por meu senso comum (aqui estou a fazer referências a obra que tenho a ingrata missão de resenhar), e o referido livro tornara-se-ia um de meus preferidos.
Parti para o Homem Duplicado ciente do que aguardava-me, ou totalmente surpreso diante de algo que não se esperara, do sentimento de espanto, admiração e assombro que percorreram-me a espinha diante dos personagens e características peculiares, das intromissões do senso comum e diálogos ágeis, argutos. Diante da irrealidade dos acontecimentos, que sempre direciona-nos ao não imaginado:
“O que de todo em todo não compreende, por muito que tenha posto a cabeça a trabalhar, é que, desenvolvendo-se em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, as tecnologias de comunicação, a outra comunicação, a propriamente dita, a real, a de mim a ti, a de nós a vós, continue a ser esta confusão cruzada de becos sem saída, tão enganosa de ilusórias esplanadas, tão dissimulada quando expressa como quando trata de ocultar.” (Pág.181).
Somos apresentados a Tertuliano Máximo Afonso, professor de história, trinta e oito anos, solteiro e não oficialmente comprometido com Maria da Paz:
“(...) mulher jovem, bonita, elegante, bem torneada no corpo e bem feita no carácter”. (Pág.225).
Esta uma bancária, um tanto quanto submissa ao indiferente tratamento por vezes recebido de nosso protagonista professor.
Não haveria romance se, por uma infeliz coincidência (ou premonição), Tertuliano não tivesse encontrado o seu duplo (ou seria ele o duplo do outro?), numa velha filmagem de categoria B, Quem Porfia Mata a Caça:
“Não é só nas vozes que somos parecidos, qualquer pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar pela sua própria vida que somos gémeos, Gémeos, Mais que gémeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais (…).
(Pág. 157-8).
Daí em diante temos o desenvolvimento de um transtorno compulsivo: Tertuliano não desistiria até descobrir-se quem o era aquele figurante de filmes de segunda categoria, onde morava e o mais importante: o que fazer quando descobrir-se que o figurante tinha o nome artístico Daniel Santa-Clara e de batismo António Claro.
A impressão que fica para os duplicados, é que mesmo sendo cópias físicas exatas e perfeitas um do outro, o mesmo não pode ser dito das referidas retidões morais: e se em um falha, pela falha ser de característica humana, no outro a imoralidade é premeditada e com júbilos consolidada.
Sobre a particularidade saramaguiana: voz tão particular e tão característica, que saber-se-á em todos seus outros títulos quem é que o escreve, sem a necessidade de conferir-se do nome o autor:
“(...) Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se a temos.” (Pág.77-78).
da ausência de travessão como marcador de diálogos, do fluxo contínuo de consciência e ações, à não existência de parágrafos para diferir e ordenar ideias.
E o que mais chama à atenção além da ironia latente à tudo e a todos, talvez seja a capacidade de surpreender persistente em cada capítulo.
Certeza também de que a moralidade dos personagens, lá pro finalzinho do livro, é posta em xeque. Assim como, indubitavelmente, a nossa.
Referências Bibliográficas:
Saramaguiano
Disponível em: ://www.priberam.pt/dlpo/saramaguiano
Último acesso: 12-01-2017, às 01:11.
site:
https://literatureseweb.wordpress.com/2017/01/12/atualizacao-xi-projeto-evite-o-emburrecimento-durante-as-ferias-academicas-mais-cronica-que-resenha-breve-historia-com-saramago/