Marc 16/04/2023
Se tornou um hábito reabilitar personagens femininas do passado, dando a suas histórias novas interpretações para mostrar que foi o preconceito, o patriarcado que deturpou suas personalidades e influenciou aquilo que pensamos sobre diversas mulheres. As bruxas, dizem, foram apenas mulheres que ousaram enfrentar o poder e acabaram, além de mortas, difamadas para sempre. Agora pense em Salomé, uma mulher sensual que conseguiu manipular o padrasto para conseguir decapitar João Batista e mostrar seu enorme poder. Por que uma mulher assim não se torna um símbolo de desafio, ousadia? Alguém que não cedeu ao poder masculino, que subjugou a vontade de homens e os fez realizarem aquilo que não queriam.
Ela provavelmente era mais inocente do que a história nos legou. Ao que tudo indica, foi sua mãe, Herodíade, quem a influenciou a pedir a cabeça de João Batista depois da famosa dança para Herodes. A menina era ainda muito jovem e provavelmente não havia sequer entrado na puberdade, o que reforça a interpretação de que ela não tinha capacidade de compreender do que se tratava e nem a gravidade do pedido que faz ao padrasto. A meu ver, seria até bastante fácil redimir essa personagem de toda a carga de violência e maldade que se atirou sobre ela, desde que se ignore o impacto da história em que ela está inserida. Mas fazer isso, da maneira como estou dizendo aqui, surtiria pouco efeito simbólico, porque é preciso haver escolhas e uma pré-adolescente, tem pouca noção do que realmente é a vida. Salomé parece, portanto, condenada ao abandono pelo movimento feminista.
Nessa versão de Oscar Wilde, a personagem é uma jovem de grande beleza e com desejos por João Batista. Ela exige que o profeta a beije, que se entregue a seus encantos. Mas como ele resiste, ela se vinga exigindo a cabeça do profeta como pagamento pela dança sensual feita a Herodes. O autor não deixa de criar uma das cenas mais macabras de toda a literatura ao descrever o júbilo por sua vitória diante do homem que lhe negara.
Quando li esse texto pela primeira vez, não deixei de pensar sobre o que aconteceria a João Batista. O significado dessa figura e de sua morte naquele contexto. É aqui, acredito, que está um ponto que podemos aprofundar um pouco. Não creio que valha a pena comentar sobre a questão do poder sexual da mulher sobre o homem, de como ela se vale de seus encantos para conseguir o que quer, já que não é capaz de conduzir pela força. Isso tudo é muito óbvio e faz parte do senso comum sobre esse texto. No entanto, se juntarmos tudo isso, todo esse poder, o poder de Herodes, de sua esposa (foram as críticas de João Batista a essa mulher que, supostamente, o levaram à prisão), enfim, esse círculo das pessoas mais poderosas da região, como eles poderiam se importar com uma pessoa que vivia em trajes desgastados, comendo com o que lhe doavam, que havia abandonado totalmente qualquer perspectiva materialista da vida?
A resposta a isso é o mais perturbador nesse texto. O poder secular, por mais forte que seja, mais capaz de assustar, de usar o terror como meio de controle da população, ele nada pode contra um tipo de poder que o transcende, que tem outra essência. João Batista era portador do Espírito Santo, era um homem de Deus e anunciava a vinda de Jesus. Ora, nada mais esperado que ele criticasse aqueles que viviam em rota de colisão com a Verdade que ele anunciava. E mesmo que suas pregações pudessem não se dirigir diretamente a uma pessoa, o poder não poderia tolerar uma mudança de direção tão radical.
Então veja os métodos que o poder secular precisa usar para condenar o Bem e a Verdade: mentiras, sensualidade, quebra de tabus dentro da família, violência, etc. Tudo isso expressa o desespero de uma estrutura que não sabe como lidar com algo que a despreza, que desloca o interesse das pessoas para um ponto em que ele não tem como alcançar e nem como legislar. Quando dizem que basta um santo para destruir um império, certamente essa é uma das histórias que melhor ilustram essa ideia. E, especificamente no caso de João Batista, o conteúdo de suas pregações (ele ensinava sobre a importância do arrependimento e da renúncia ao mundo, pois ele afasta os homens de Deus) cai como um bomba para o poder. Como enfrentar algo dessa natureza?
Não se trata de dizer que os religiosos sejam revolucionários. Longe disso. Aliás, bem o contrário, pois não lhes interessa modificar a ordem das coisas nesse mundo. Mas não resta nada ao poder secular que não seja usar seus instrumentos de coerção; ele não tem outros meios. E João Batista é referido como o maior dos homens, ou seja, aquele que conseguiu se aproximar mais do que Deus espera de todos nós. Mas, do ponto de vista do poder, a pregação religiosa será sempre contestadora, porque atinge o cerne do que ele é. Se os homens não se entregam mais com tanto afinco ao líder, se passam a desprezar o que ele pode lhes oferecer, se tem seus olhos voltados para um outro lugar, o poder precisa “resgatar” sua influência sobre as pessoas; caso contrário, o solo sobre o qual se ergue terá sido solapado. É por essa razão que os religiosos são ameaça aos poderosos e serão sempre perseguidos ao longo da história. Segundo a lógica do poder, qualquer homem que não lhe adore é um inimigo, uma perda de poder, literalmente.
Em resposta a isso, muito depois do tempo de João Batista, muitos filósofos se dedicaram a tentar criar um sentimento de adoração quase religiosa, de culto ao Estado e ao líder (os totalitarismos do século XX foram todos baseados nessa ideia) e obtiveram relativo sucesso. É por essa razão que todos os totalitarismo também perseguiram as religiões. O poder secular não pode aceitar um tipo de concorrência que contesta sua base. Dizendo de outro modo, a religião lida com o transcendente, com a salvação da alma e o poder secular tenta descaracterizar essa promessa, direcionando a expectativa da salvação para a vida material, presente. Nos adiantamos um pouco na história, esse comentário abre para uma discussão bastante interessante, mas não pode ser feito aqui.
O desfecho que Oscar Wilde construiu, que não está presente de forma alguma na Bíblia, pode ser interpretado como uma vitória da sensualidade (aqui entendida num sentido amplo, como aquilo que é do corpo, material, em contraposição à vida espiritual) sobre o espírito, mas não acho que seja isso. Como Judas, que traindo Jesus acaba confirmando todas as Suas promessas e Lhe permite vencer a morte, Salomé imagina vencer o profeta, mas apenas confirma seus avisos: a humanidade se corrompe e não mede esforços para alcançar o prazer e o poder. Se ela não ousasse algo tão perigoso e violento, jamais teria confirmado essas palavras. Acho que o texto consegue um feito muito importante ao mostrar o embate entre uma linguagem do poder — que é sempre política e só compreende a política —, e a religião, que despreza o jogo político, sendo até mesmo incapaz de reconhecer alguma validade nele. A maneira como termina sua história explicita isso, porque se pudéssemos ler o que o profeta estaria pensando, haveria alegria em seu olhar, pois sua fala estaria confirmada.
Acho que, voltando ao tema dos motivos pelos quais essa personagem não foi reabilitada pelo feminismo, podemos dizer que a chave de tudo está aqui. Por um lado, a menina não tinha sabedoria e inteligência suficiente para transgredir, o que retira o impacto simbólico de seu ato (dentro desse âmbito, mas nunca em relação ao profeta, como dissemos); por outro lado, mantê-la como a mulher violenta e sensual, transgressora e manipuladora, que quebra o poder dos homens, tem o mesmo efeito, porque ela só fez reiterar o sentido das palavras do profeta. Em sua história, Salomé não consegue transgredir de fato, porque suas ações terminam desvelando uma lógica anterior que regia os atos de todos e que ninguém — a não ser o profeta — conhecia. Salomé está condenada, seja qual for a maneira que a olharmos, a confirmar as palavras de João Batista.