Marcelo Rissi 02/02/2021
A estepe (Anton Tchékov)
Encerrei, há alguns dias, a quarta leitura de 2021: ?A estepe?, do consagrado escritor russo Anton Tchekhov. Após maturar as ideias por curto espaço de tempo ? ao longo de alguns dias ?, lancei-me à tarefa, que ora realizo, de elaborar um texto ? uma resenha, talvez ? sobre essa obra de beleza ímpar. Faço-o, porém, de forma sucinta (tentarei, ao menos), visando a aprimorar a concisão, objetivo recentemente autoproposto.
O russo Anton Tchekhov (1860-1904) ? que atuou como médico, escritor e dramaturgo ? publicou ?A estepe? em 1888, obra que inaugurou a sucessão de narrativas mais longas do autor. Antes, o escritor já havia construído, com sucesso, extensa produção literária, desenvolvida até então, porém, na forma de contos mais curtos e sucintos.
A produção literária do autor coincide, aproximadamente, com o período de publicação de consagrados romances de seus compatriotas russos, a exemplo de ?Os Irmãos Karamazov? (1881), de Dostoiévski, e ?Anna Karênina?, de Tolstói (1877), apenas para citar algumas publicações da época.
A profícua produção literária russa, notadamente do século XIX, é marcantemente caracterizada pelas ações de impacto, pelas tramas e pelos enredos complexos e intrincados que abriam canal, expressa ou implicitamente, a reflexões e aprofundamentos filosóficos, políticos, psicológicos e sociais.
Tchekhov, seguindo direcionamento oposto, desenvolveu estilística própria, não coincidente com essa tendência presente à época. As narrativas do autor, norteadas pela concisão, não se caracterizavam, no geral, pela densidão e pela extrema erudição. Primavam, sobretudo, pela beleza estética ? quase poética ? da narrativa e pela prodigalidade e elegância nas descrições, objetivo que o autor alcançou com incomparável nível de excelência. Não à toa, Tchekhov pertence à categoria dos grandes escritores mundiais, titulando a autoria de indisputáveis obras clássicas.
Em ?A estepe?, o autor desenvolveu uma narrativa alinhada à sua estilística peculiar, moldada às características já mencionadas. A obra em questão é relativamente curta ? a edição que possuo, da editora ?Penguin?, contém aproximadamente 120 (cento e vinte páginas) ? e descreve a história de uma viagem por uma estepe. É esse, em síntese, o tema central da ficção, que, assim, não à toa, recebeu o subtítulo ?História de uma viagem?.
Apenas para consignar uma breve síntese: o garoto Iegóruchka, criança, é o personagem central. Por iniciativa da mãe, Iegóruchka foi agraciado com a oportunidade de estudar num bom colégio, situado, porém, em localidade distante. A fim de viabilizar, então, os estudos, Iegóruchka inicia, ainda criança, uma viagem de alguns dias pela estepe, rumo a uma nova vida, longe da família e de sua cidade de origem. Iegóruchka é acompanhado, na oportunidade, pelo tio Ivan Ivanitch e pelo padre Kristofor, ambos comerciantes (que, na oportunidade, realizavam uma viagem de negócios), e pelo cocheiro Deniska, que conduzia a charrete, meio de transporte utilizado ao longo da viagem pela estepe.
A narrativa desenvolve-se, essencialmente, nesse cenário e nessas condições. Não há, em ?A estepe?, um enredo complexamente intrincado, com grandes aprofundamentos e tramas a partir de longas digressões. Tampouco assim o objetivou o autor, porém. Afinal, conforme adequadamente observado na sinopse do livro (escrita pelo tradutor Rubens Figueiredo), o desafio de Tchekhov, em ?A estepe?, ?era escrever uma narrativa sem enredo, sem heróis, sem outra crise que não um resfriado que o menino Iegóruchka pega na viagem. Uma narrativa sem aventuras e ações de impacto, senão aquelas presentes, de forma indireta, nas histórias meio inventadas que os carroceiros da estepe contaram para Iegóruchka?.
Equivoca-se, porém, quem porventura conclua, apressadamente, a partir desses breves apontamentos, que ?A estepe? encerra obra pedante e enfadonha. Como já afirmado, Tchekhov lançou-se ao peculiar desafio de escrever uma narrativa sem enredo, mas que, ao seu turno, primava pela beleza descritiva, em tons praticamente poéticos. Fazendo-o com incomparáveis maestria e sublimidade, o autor alcançou resultado ímpar, colocando-o, não por acaso, na categoria dos grandes escritores mundiais, fato evidentemente impulsionado por obras como ?A estepe?.
Tchekhov possuía aquele dom ? raro talento ? de, operando com as palavras, inserir o leitor na narrativa. As descrições, em ?A estepe?, foram desenvolvidas com tamanha elegância e minúcia, que o leitor é capaz enxergar os cenários, sentir o olfato dos ambientes e dos aromas retratados, o paladar das refeições, as oscilações das temperaturas, os sobressaltos das intempéries e assim por diante.
A obra em questão, porém, não é apenas rica em descrições objetivas (de lugares, de paisagens, de cenários, de sensações olfativas etc.). ?A estepe? é, igualmente, pródiga no desenvolvimento do íntimo dos personagens, expondo, após perscrutação interior, suas reflexões, seus pensamentos e seus sentimentos (tais como solidão, medos, incertezas, angústias, tristezas e inseguranças), usualmente manifestados nos solilóquios (especialmente de Iegóruchka, criança sobre quem se abatem, usualmente, diversos sentimentos conflituosos internos, claramente provocados por tantas mudanças e incertezas e, especialmente, pela necessidade de tantas e tão bruscas adaptações desde tão tenra idade).
Para citar um momento de íntima reflexão que expõe manifestação de intensa solidão, um dos solilóquios contidos na obra foi assim descrito pelo autor, com a beleza lapidar que dá o tom de ?A estepe?: ?Quando contemplamos o céu profundo por muito tempo sem desviar os olhos, não se sabe por que, os pensamentos e a alma se fundem na consciência da solidão. Começamos a nos sentir irremediavelmente sós e tudo que antes achávamos próximo e familiar se torna infinitamente distante e sem valor. As estrelas, que miram do céu há milhares de anos, o próprio céu insondável e a escuridão se mostram indiferentes à vida breve dos homens e oprimem nossa alma com seu silêncio, quando acontece de ficarmos cara a cara com eles e tentamos alcançar seu sentido; então, nos vem ao pensamento a solidão que aguarda cada um de nós na sepultura e a essência da vida parece misteriosa, assustadora...?.
?A estepe?, porém, não se junge apenas à abordagem descritiva de uma viagem (seja no aspecto externo do transcurso, seja sob o viés da interioridade dos personagens). Há outras questões de fundo que, conquanto não explícitas, oportunizam algumas reflexões pertinentes, ao menos a partir das entrelinhas.
Cite-se, a propósito, a situação de miserabilidade e de extrema vulnerabilidade social e econômica que se abate sobre algumas famílias russas (fato que, evidentemente, não se limita à realidade daquele período e local). Esse aspecto é evidenciado a partir da condição de alguns dos personagens (inclusive, e especialmente, daqueles que surgiram brevemente ao longo da narrativa nas residências visitadas por Iegóruchka).
A relativização da importância do ensino de qualidade e das atividades intelectuais é outro assunto que, igualmente, oportuniza debates importantes acerca da necessidade de escolarização infantil. Isto porque, em alguns diálogos, Ivan Ivanitch manifestou expressa insatisfação com o fato de que Iegóruchka, guinado aos estudos e à vida acadêmica por influência da mãe, não atuaria no comércio conjuntamente com seus familiares (o que, na visão obnubilada daquele personagem ? Ivan Ivanitch ?, seria prejudicial à família, em termos de retorno financeiro).
O precoce amadurecimento experimentado por Iegóruchka, impulsionado pelas circunstâncias (notadamente pela necessidade de deixar a residência materna, ainda criança, para fins de estudos em cidade que lhe era nova, distante e estranha) é outro ponto que também confere azo a importantes reflexões e a ponderação de valores (por vezes inconciliáveis): de um lado, a necessária escolarização da criança, mediante oferta de ensino de qualidade (o que, no contexto da narrativa, era inviável na cidade de origem de Iegóruchka); e, de outro, o direito da criança ao crescimento e ao desenvolvimento no âmbito da família próxima (o que, no contexto da narrativa, também era inviável, já que, na cidade para onde Iegóruchka foi levado, ele não possuía familiares, parentes próximos ou remotos, amigos ou mesmo conhecidos).
Em suma, ?A estepe? conjuga, com maestria e excelência, a habilidade do autor em desenvolver uma narrativa pródiga em descrições, interiores e exteriores, de personagens (tendo, como ?pano de fundo?, uma viagem por uma estepe) com precisas incursões, ainda que implícitas nas entrelinhas, de questões ? sobretudo sociais ? abertas a importantes reflexões atemporais. Considero-a, portanto, e por todos esses motivos, obra altamente recomendável.