Gabi 05/04/2014
"Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu."
Esta é a pequena nota de abertura deste pequeno grande romance, onde realidade e ficção se misturam numa história triste e arrebatadora - pois você sabe o que aconteceu, mas não sabe de mais nada... Nem como, nem porquê. K., primeira ficção do jornalista Bernardo Kucinski, é um livro que dói. Dói saber e sentir o quanto o protagonista sofreu, assim como muitas famílias também sofreram, no período da ditadura militar. A história narra a vida do senhor K., um imigrante judeu que fugiu para o Brasil no período da II Guerra Mundial e vê-se perdido e destroçado quando sua filha "é desaparecida" (esse é o código para "foi preso, torturado e morto pela polícia").
Quando eu digo que ficção e realidade se misturam, devo mencionar que K. é o pai do autor, e a filha desaparecida é Ana Rosa, sua irmã, uma professora de Química da Universidade de São Paulo e limitante clandestina da Aliança Libertadora Nacional (ALN), casada com um também militante e também desaparecido, Wilson Silva. Com olhos delicados (e provavelmente marejados) de um narrador machucado, Kucinski conta-nos a história de seu pai: a descoberta do desaparecimento, do casamento secreto para ele, do envolvimento da filha no movimento anti-ditadura. E é dura, meus caros, essa história que deixa o leitor também com olhos tristes e molhados, vivendo 40 anos depois (o desaparecimento é em 1974) a angústia latente e a ânsia em ao menos descobrir - tudo o que estas famílias vivem até hoje e o tempo vai apagando da mente de outros.
Apesar de ser o relato de um pai especificamente procurando uma filha, é sim uma lembrança e homenagem a todos que desapareceram nesse período amargo da história brasileira. Os sobreviventes são isso mesmo: ganham uma sobrevida, mas seria viver? Viver morrendo cada dia um pouco, correndo atrás de um corpo que não mais existe para chorar.
K., mesmo sabendo que todas as falsas pistas são apenas jogadas para confundi-lo e machuca-lo, corre atrás de todas elas: um pacote vindo de Portugal, onde claramente a letra não é de sua filha; um telefonema dizendo que "o corpo está em lugar x", uma turista brasileira nos Estados Unidos que diz ter encontrado sua filha e que ela mandou um recado. Nossa esperança, mesmo sabendo que não deve existir, perpassa cada um destes obstáculos junto com o protagonista, e a sua dor é a nossa dor, por todos os que foram e que sofrem hoje com uma cicatriz que não existe.
Na semana em que são datados 50 anos da Ditadura Militar brasileira, encontramo-nos com diversas opiniões sobre, mas vale a mim ressaltar apenas uma: de que ela não existiu. Existem, pois, os corpos dos militantes desaparecidos? Não, realmente eles não existem. Existe, porém, uma dor em todos os diretamente envolvidos no processo: torturados, familiares, amigos, que nunca vão esquecer uma lembrança apagada na mente de outros tantos milhões de brasileiros.
Dor é o que este livro traz. Sentimentos de injustiça, tristeza, compaixão vêm junto. E o coração fica um pouco mais pesado.
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