Marcelo Rissi 27/12/2021
A montanha mágica (Thomas Mann)
Lançar-se ao desafio de analisar obra de tamanha envergadura como "A montanha mágica" é expor-se ao risco do ridículo ou da vergonha. Afinal, nada que se escreva a respeito desse romance parece suficientemente à altura de sua grandeza. Vencido, porém, o receio, injustificável limite autoimposto, encorajei-me a tecer, com humildade, algumas palavras sobre esse trabalho primoroso e tão grandioso, em extensão e qualidade, após mais de um ano da finalização da leitura.
Para a proposta que idealizo - a de uma resenha relativamente sucinta e sem apego ao rigor de qualquer técnica literária (pretendo apenas registrar alguns comentários, impressões e opiniões de um leigo, mero entusiasta de literatura) -, creio pertinentes os comentários que adiante lanço.
Li "A montanha mágica" há aproximadamente 1 (um) ano e meio, de modo que muitos detalhes possivelmente já me escapam. Espero não ser lacônico, então.
"A montanha mágica" é uma obra bastante prolixa. Essa era, aliás, a característica estilística do autor (para alguns, uma qualidade. Para outros, um defeito). A edição que adotei, publicada pela editora Companhia das Letras, possui 815 (oitocentas e quinze) páginas, desconsiderando-se o posfácio.
A leitura afigura-se, no início, arrastada e sem grandes movimentos, sobressaltos ou avanços no enredo. A obra (segundo a minha edição) reserva aproximadamente 200 (duzentas) páginas apenas para narrar os 7 (sete) primeiros dias de Hans Castorp no sanatório Berghof. De todo modo, à medida que a história avança, as situações começam a acontecer/se desenvolver e a leitura, a fluir.
A maravilha e o brilho da obra estão em seu aspecto multifacetário, com temas esmiuçados com muito vagar e empenho pelo autor, que, claramente, estudou e pesquisou diversos assuntos, amiudadamente e com profundidade, para desenvolvimento da narrativa.
Para exemplificar o aspecto multifacetário da obra, há, em "A montanha mágica", incursões filosóficas profundas. A esse respeito, vide as conversas entre Naphta e Settembrini, esse último, meu personagem preferido (e, para muitos, o verdadeiro protagonista e principal personagem da obra).
Ainda para ilustrar em tema de incursões filosóficas, há uma cena bastante marcante - a mim, ao menos -, em que Hans Castorp, desejando vencer a própria mediocridade, fato de que ele estava razoavelmente ciente, procurou e encontrou um livro de conhecimentos "universais", no bojo do qual eram abordadas questões existencialistas e da própria constituição e composição universo, desde o menor átomo à sua expansão infinita (do universo). É um trecho bastante longo, profundo e o autor submergiu em impressionantes incursões e minúcias, inclusive científicas, ao longo dessas análises, para enfrentamento desses temas altamente complexos.
Sem pretender esgotar o objeto e a temática abordados na obra, há, ainda, exemplificativamente, incursões em:
- questões espirituais (o que é notado, com muita ênfase, a partir do surgimento, ao final da obra, de uma personagem denominada Ellen Brand, especialmente na cena da mesa);
- questões psicológicas e comportamentais, inclusive de relacionamento humano (algo perceptível, de forma difusa, ao longo da narrativa, especialmente a partir da forma como os personagens, inclusive entre grupos de diferentes culturas, hábitos, etnias e países, interagiam no sanatório);
- questões atinentes ao amor e à sexualidade (a esse respeito, menciono, ilustrativamente, a forma como se relacionavam Clawdia Chauchat e Hans Castorp. Chama especial atenção, nesse particular, a cena em que ambos dialogaram a sós em francês, após tantas tentativas de aproximações e após tantos contatos velados, indiretos, distantes e, até mesmo, enigmáticos);
- questões sobre homossexualidade (vide as diversas digressões e retrospectivas que Hans Castorp resgatava intimamente, enquanto relembrava Pribislav Hippie e o período escolar. Para muitos, o autor colocou-se na própria narrativa nesses momentos);
- debates sobre visões díspares de mundo, do extracorpóreo e do metafísico (vide a retórica e os diversos, férteis e empolgantes diálogos entre Naphta e Settembrini, um deles, dualista e, o outro, pessoa que enxergava o mundo e a espiritualidade de maneira unitariamente amalgamada);
- questões, ainda, atinentes à morte, ao luto e, inclusive, ao suicídio, com profundas análises sobre os tabus morais que esse assunto - suicídio -, tão complexo, enseja.
Há, também, em momento contendo enorme grau de lirismo, uma sequência de cenas bastante marcante, aprazível e, por vezes, onírica, na qual Hans Castorp percorre um longo passeio, sozinho, pela montanha, durante o período de neve. O aspecto altamente descritivo desse trecho, contendo sobreposição e sucessão de camadas altamente "saborosas" em imagens, sons e ambientes - tudo isso mesclado com doses incisivas de devaneio -, é, para muitos, o momento de maior regozijo, deleite e prazer da leitura de "A montanha mágica". Talvez eu concorde com isso. Talvez.
"A montanha mágica" é, de fato, por vezes e para alguns, um duelo contra o enfado. A narrativa se desenvolve a passos lentos e, mesmo quando ela [a narrativa] começa a tomar forma, avançando, o autor é sempre pródigo em detalhes, o que pode tornar a história compreensivelmente cansativa para alguns. De todo modo, o resultado é uma obra lapidar, irrepreensível, na qual o autor abordou diversos temas - muitos dos quais, ainda atuais - com um olhar humano, profundo e, por vezes, até mesmo técnico e científico (após, notoriamente, intensa pesquisa e estudo). Não por outro motivo, Thomas Mann consumiu 12 (doze) anos para terminar a obra (em parte, também, pelos hiatos que ele fez durante a sua elaboração).
Superados o tédio e o marasmo (para alguns) das primeiras páginas, o leitor se maravilhará, por certo, com o universo que "A montanha mágica" abrirá perante seus olhos.
Altamente recomendável. Enfatizo: altamente!