Romeu.Silveira 09/03/2018O reality show da mortePode parecer uma coisa esdrúxula, uma comparação absurda, mas foi essa a sensação que eu tive quando terminei de ler A Montanha Mágica, do Thomas Mann. Hans Castorp fez parte do reality show da morte. Ele tentou sobreviver até o fim, tentou ser esperto e burlar as regras do destino e do jogo, mas a cada partida, assim que cada personagem era eliminado da história, significava um sinal para o "nosso herói".
Não foi fácil. Não é um livro para ser lido em qualquer lugar, com barulhos e pessoas por perto, muito menos quando estamos com a cabeça lotada de preocupações e outras coisas. Nessa horas, é melhor coloca-lo de lado. É preciso se desconectar de tudo, respirar fundo e encarar a subida, o ar rarefeito, as dores, o cansaço, a raiva por ter entrado nessa jornada. E junto com a raiva, vem a perplexidade das paisagens que aparecem, as reflexões, os ensinamentos, os contrapontos, os sentimentos, as paixões, ah, as paixões. Eu discordo quando dizem que esses Bildungsroman, ou romances de formação, são caracterizados só pela transformação do personagem principal ao longo da história. Não, os romances de formação também são responsáveis pela nossa transformação ao longo da história. Depois de terminar o livro, veio uma grande retrospectiva de tudo que eu li (e vivi) junto com essas personagens, das coisas que me marcaram, como o capítulo "Neve" e "Passeio na Praia", que é uma das coisas mais bonitas que eu já li sobre o tempo. Veio também um grande sentimento de gratidão por tudo que me ensinaram durante essa jornada. Na verdade, é tudo sobre o tempo, sobre o excesso e falta dele. Não poderia ter escolhido livro mais perfeito pra ler antes de completar 30 anos.
Thomas Mann, nesse livro, me pareceu um escritor totalmente anticlímax: o romance de Hans com Clawdia não teve futuro, quando começamos a criar simpatia por Pepperkorn ele subitamente é eliminado do "reality show", e quando menos esperamos, nosso herói aparece do nada num campo de batalha, para o nosso desespero. Na verdade, tudo nos últimos capítulos desse livro é sobre desespero, sobre fugir, sobre tentar fazer algo da vida enquanto ainda há tempo. Naptha pegou o zeitgeist no ar rarefeito da montanha e tratou de dar um fim ao seu sofrimento. Hans encarnou o herói e desceu. E uma coisa que me ajudou a entender o trecho final, aquele logo depois dos três pontos maçônicos do Settembrini, foi esse texto que encontrei em Homo Deus, best-seller do Yuval Noah Harari. Quem escreveu isso foi o tenente Henry Jones, que lutou na primeira Guerra Mundial no Exército britânico e morreu aos 21 anos, três dias depois de escrever essa carta para o seu irmão. Pra mim, tudo está claro e agora se encaixa:
"Você já refletiu alguma vez sobre o fato, de que apesar dos horrores da guerra, ela é uma grande coisa? Estou querendo dizer que nela a gente se defronta com realidades. As loucuras, o egoísmo, o luxo e mesquinhez em geral do tipo de existência vil e comercial, praticados por nove décimos das pessoas no mundo em tempos de paz são substituídos na guerra por uma selvageria que ao mesmo tempo é mais honesta e explícita. Veja a coisa assim: em tempos de paz, cada um vive apenas a própria vidinha, envolvido em trivialidades, preocupando-se com o próprio conforto, com questões de dinheiro, e com todo esse tipo de coisas — vivendo apenas para si mesmo. Como é sórdida essa vida! Na guerra, por outro lado, mesmo se você for morto, só estará antecipando o inevitável em alguns anos, de qualquer maneira, terá a satisfação de saber que levou a pior na tentativa de ajudar seu país. Você, na verdade, realizou um ideal, o que, até onde eu sei, fazemos muito raramente na vida normal. O motivo para isso é que na vida normal a vida se desenrola numa base comercial e egoísta. se você quiser 'se dar bem', como se diz, vai ter de sujar as mãos. Pessoalmente, eu com frequência me regozijo de que a Guerra tenha surgido em meu caminho. Ela fez com que eu me desse conta de como a vida é mesquinha. Creio que a Guerra deu a cada um a oportunidade de 'sair de si mesmo', como eu poderia dizer... Certamente, falando por mim, posso dizer que nunca em toda minha vida eu havia experimentado uma alegria tão desenfreada, como se fosse o início de uma grande arrancada, como a de Abril último, por exemplo. A excitação durante a última meia hora, se tanto, que antecede não se compara a nada na Terra."