Sharon 30/04/2012Montanha russa!São nove contos divididos em três partes de acordo com o tema, o local ou o estilo:
1. Oriente
Histórias na Índia atual mas com jeitão e sabor de lenda mágica... minha parte preferida. O primeiro conto é uma delícia e me deixou com altas expectativas. Uma moça chega no consulado britânico para a entrevista que vai permitir sua ida à Inglaterra, casar com o noivo. Um "especialista em conselho" se encanta pelos olhos da moça e dá seu conselho, geralmente caro, de graça: ela pode conseguir um passaporte britânico original, de forma rápida, se falar com beltrano e etc etc... ela nega e entra no consulado, enfrentando a entrevista com honestidade. Quando ela sai... o desfecho é ótimo! Os outros dois contos são divertidos também. A forma irônica com que o Rushdie descreve o próprio povo causou problemas pra ele, mas só traz prazer pra gente... Rir de si mesmo é uma benção, e nós (eu) temos muito que aprender...
2. Ocidente
Muita gente gostou dos contos dessa parte, como a Anica, mas eu... médio. Não pela ironia ter mudado de alvo (agora são os ocidentais), mas pelo estilo ter mudado. Uma ironia sobre estilo? Será? Acho que sim, mas eu prefiro a narração simples e saborosa dos primeiros contos a essa espécie de taquigrafia rascunhada que povo gostava de fazer nos anos 90... sem muita lapidação, verborrágico. Chato. As histórias são mal contadas, mas as ideias são boas. Hamlet sob o ponto de vista do bobo Yorick. Um leilão de sapatinhos de rubi representando nossa dependência do consumo que me cheirou muito (MUITO) a Asimov, então curti... médio. Uma especulação sobre como Colombo consegue suas caravelas. Nesse último o bom estilo dos contos começa a reaparecer, como uma montanha russa narrativa.
3. Oriente, Ocidente
Agora a Índia e o Ocidente se encontram, se misturam e a ironia some. Pena. O primeiro conto é sobre dois amigos de faculdade, o indiano contando a vida do ex-colega e depois escritor, inglês. O final também surpreende, como no primeiro conto. A segunda história é uma maluquice sobre espiões que eu não compreendi direito. E a última é a volta do estilo cuidadoso (que bom!), agora não mais engraçado, mas triste e bonito. A história do amor de uma ayah indiana, uma espécie de governanta/empregada e de um porteiro de origem soviética. A história é contada sob o ponto de vista das crianças cuidadas pela ayah, e os apelidos que eles usam para o casal são uma delícia. Mary-Certamente para a ayah, porque ela sempre dizia "Oh-sim-certamente ou não-certamente-não". E Miscelânea para o porteiro, pois seu nome verdadeiro, na língua materna, era de pronúncia complicada aos petizes indianos.
O conto não é bem um romance de formação, mas tem uma pitadinha:
"Aos dezesseis anos, a gente pensa que pode fugir do pai. A gente não está ouvindo a voz dele falando pela boca da gente, a gente não percebe como nossos gestos já espelham os dele; a gente não o vê no modo como nos mantemos de pé, no modo como assinamos nosso nome. A gente não ouve o sussurro dele em nosso sangue."
Esse conto fecha o livrinho muito bem e ele volta a ganhar a estrelinha que perdeu no labirinto do estilo. Acredito que o objetivo do Rushdie era esse mesmo: começar muito bem, mostrando uma forma universal de contar história, que fica melhor com o tempero de cada terrinha. Então ele assusta a gente com a nossa própria invenção mal feita e nossas invenções mal ajambradas, para voltar a ser um tradicional (e muito bom) contador no final do livro. É um pequeno encontro em todos os sentidos: enredo, tema e estilo. Vale a pena, mas faça como eu: leia aos poucos, sem pressa, no tempo que sobrar. Até porque, segundo consta, tem Rushdies melhores.
mais resenhas em: www.quitandinha.blogspot.com