Quel Ratajczyk 26/10/2023
Kehinde. “Kéindé”, conforme pronuncia da autora. Esse é um dos pontos altos em ler uma obra escrita contemporaneamente e cujo autor – neste caso, a grandíssima Ana Maria Gonçalves – ainda vive e é disponível: você consegue sanar boa parte dos seus questionamentos e ver ainda mais riqueza em um livro já muito belo. Ainda assim, o receio de receber spoilers fez com que eu adiasse as entrevistas da autora para quando terminasse a leitura, o que resultou no nome da protagonista sendo por mim pronunciado mentalmente como “Kêrráindê” durante todo o livro. Uma pronúncia de língua inglesa em um nome africano – quê?! Sim, eu fiz isso. Perdoem-me.
Desse modo, sugiro aos futuros leitores que procurem conhecer a obra, sem medo de spoilers. Afinal, eles nos são dados até pela própria protagonista quando consulta os babalorixás, o que não diminui as expectativas sobre o desenrolar da narrativa. E, convenhamos, não há spoiler suficiente para tirar o ineditismo das mais de 900 páginas escritas. Ou seja, pesquisar sobre “Defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, é um incentivo ainda maior para a leitura – ao menos comigo foi assim :) Cito aqui alguns pontos de destaque:
- Kehinde é inspirada no pouco que se sabe sobre Luísa Mahin. Para quem não sabe (Eu também não sabia e, provavelmente, por que? Apagamento histórico!), a mãe de Luís Gama – aquele que comprovou ser uma pessoa livre para seu dono, estudou Direito e libertou outros escravizados. Ou seja, o livro é datado historicamente e propõe uma identidade para essa mulher quase sem registros de existência;
- Acompanhando os sucintos dados biográficos que se tem de Luísa, o que se tem de fictício em Kehinde é, na verdade, fruto de muita pesquisa. Segundo a autora, grande parte do que acontece com a protagonista aconteceu com alguma outra mulher negra escravizada. Ou seja, a personagem é formada como uma colcha de retalhos, reunindo registros históricos da escravidão no Brasil e dos escravizados que retornaram à África;
- Quase no “padrão” jornada do herói, o leitor vê a infância de Kehinde, está com ela durante no tolhimento da liberdade e no seu florescimento como mulher, sofrendo junto dela as consequências e iluminado os pequenos “pontos de suspiro” disso tudo. Da África para terras brasileiras, os acontecimentos, as convicções, os anseios e as alegrias são narrados sem poupar detalhes, apresentando a protagonista de modo humano, com erros, acertos e atitudes (quiçá muito) questionáveis.
Atiçada a curiosidade e pensando em uma sinopse da trama (para minha experiência, vide o Post scriptum), Defeito de Cor tem Kehinde como personagem principal e a acompanha desde sua infância, até sua captura para ser escravizada, vinda ao Brasil e todos os altos e baixos que aqui viveu. Mulher e negra, a protagonista vive paixões, luta por liberdade, participa de revoluções, torna-se mãe, empreende comercialmente; descobre-se religiosamente e muitas coisas mais. Mesmo numa realidade cruel, ela entende que educação é tão importante quanto religião; constrói laços fraternos reais ao mesmo tempo em que cultua seus antepassados; realiza sonhos mesmo entremeio a dificuldades; exerce a maternidade sem se diminuir como mulher; e, sobretudo, sabe que não existe “defeito de cor” algum em ser preta.
"A minha vida seguiu um caminho e fui me deixando levar para muito longe do que tinha imaginado. E isso foi bom para mim, que tinha conseguido coisas com as quais os pretos nem sonhavam, não porque sonhassem pequeno, mas porque não sabiam que tais sonhos eram possíveis", posição 7258.
Na reta final do livro, o retorno de Kehinde à África depois de “se fazer” no Brasil apresentou-me algo que jamais tomei conhecimento até então: a distinção que se tinha entre africanos e africanos retornados da escravidão, que incorporaram aspectos culturais do escravizador. Ao retornar para o próprio continente, essas pessoas criaram uma espécie de colônia brasileira, ao passo que, agora, reavaliavam o antigo modo de vida. Com duras críticas por parte da protagonista, cabe ao leitor ponderar os julgamentos e apropriar-se com consciência dos juízos feitos sobre o povo africano.
Apesar do tamanho da obra assustar, “Defeito de Cor” é, na minha “degustação”, até mais leve do que “Os Miseráveis” em termos de descrições. No clássico francês, as passagens descritivas prolongam-se, com pesadas contextualizações históricas. Já no clássico contemporâneo de Ana Maria Gonçalves, mesmo as passagens mais pesadas são narradas com simplicidade e leveza, enquanto as contextualizações históricas acontecem como uma conversa. De modo geral, é uma obra que não deveria passar despercebida e, uma vez lida, não será esquecida.
P.s.: Li no Kindle e não fiz as pesquisas prévias – como já mencionei, apenas tomei conhecimento da obra através da leitura coletiva do canal Ler Antes de Morrer. Não acompanhei o grupo, mas posteriormente assisti as discussões. Ou seja, não sabia que a narração era de uma “africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas” (conforme citam nas descrições do livro), no caso, a Kehinde. Sem saber disso, só constatei que era a própria protagonista narrando os fatos da sua vida diretamente da velhice quando a própria se revela como tal – até então, pensava que a narração era onipresente de modo contemporâneo aos fatos (contar conforme vive). Gostei dessa experiência, acho que ganhei muito em expectativa ao descobrir isso no ritmo do livro e não a partir da sinopse mais popular – que julgo ser até desnecessária pelo modo que é escrita.
P.p.s.: Não acredito que teve esse fim! Esperava um reencontro. Mas entendo. No livro todo a gente sonha junto a Kehinde, vê ela conquistando as coisas por caminhos nem sempre esperados. Então, nesse momento, cabe ao leitor preencher a lacuna com muita esperança de um final feliz – foi o que fiz. Além disso, o final que eu esperava uniria a protagonista – lembrando que é baseada em Luísa Mahin, mas composta pela vivência de muitas mulheres – com todo real Luís Gama, o que nem aconteceu de fato, pelo que se sabe. Então, cabe sonhar mesmo.