Sidélia 11/09/2023
Através do Tempo e da Cultura
O livro tem um começo verdadeiramente impactante, lançando-nos diretamente em um contexto de guerras, fugas e perdas. A protagonista, gêmeas juntamente com sua avó, deixam para trás o luto de sua mãe e irmãozinho, embarcando em uma travessia longa e densa.
No decorrer dessa extensa saga, a autora, Ana Maria, habilmente nos apresenta as múltiplas camadas de cultura, assimilação e violência que permeiam a acumulação de capital nos séculos XVIII e XIX.
A narrativa, por vezes lenta e detalhada, é contada sob a perspectiva de Kehinde e outros personagens que surgem ao longo da história. Embora alguns personagens possam parecer dispensáveis no desenvolvimento do enredo, se tornam indispensáveis na apresentação das complexas relações comerciais, escravistas e familiares que caracterizam esse período histórico.
Nesse sentido, o livro se revela como uma obra profunda com adornos históricos que nos conduz pela intrincada teia de relações das pessoas negras no contexto político e econômico da transição para a abolição e a república.
Além disso, nos transporta para o cenário africano em dois momentos distintos: o primeiro, marcado pelo sequestro de pessoas negras, estabelecendo um mercado robusto, e as guerras entre aldeias e nações, frequentemente instigadas por interesses políticos dos portugueses e ingleses. No segundo momento, observamos a tentativa de retorno das pessoas anteriormente escravizadas. Esta fase é marcada pela frustração mútua: dos retornados, que não encontram suas terras como as deixaram, e dos habitantes locais, que resistem às tentativas dos retornados de impor o catolicismo e o sincretismo. É notável a maneira como alguns costumes são incorporados de acordo com as conveniências, como a poligamia.
Outro ponto de interesse é a exploração das diversas formas e perspectivas do trabalho escravo, bem como as tentativas de cooperação entre as comunidades negras, que podem estar ligadas a cultos católicos, protestantes, orixás, inquices, mulçumanos e voduns. A própria Kehinde experimenta várias dessas situações ao longo de sua jornada, alternando entre muçurumins, sincretismo, voduns, orixás e outros.
Enfim, é um livro longo e complexo e que nos apresenta através da história de Kehinde os acontecimentos complexos que construíram as cooperações e articulações entre pessoas negras vinculadas a alguma religiosidade. É um mergulho nas complexidades de cada uma das religiões e suas tramas políticas e econômicas que reverberam na resistência, articulação e solidariedade entre pessoas negras no contexto da escravidão.
Recomendo!