Pablo Paz 13/04/2024
Touché!
"Defeito de Cor" faz alusão a uma lei da sociedade brasileira escravista que dispensava cidadãos de cor, de seu defeito (a cor escura que remetia a trabalho braçal e escravizado), para poderem exercer determinados cargos no exército, na igreja e na administração pública. O cidadão "de cor" podia escrever ao Imperador pedindo dispensa da cor, "embranquecendo-se" para estar à altura do cargo que visava ocupar. Alfim, era uma dessas jabuticabas da elite brasileira que não podia se dar ao luxo de dispensar gente talentosa já que massacre de povos, parafraseando o padre Antonio Vieira, não passava de desperdício de recursos humanos porque sempre há talentos que se perdem.
É difícil resenhar um livro com 17.000 leitores e média 4,7 só aqui no Skoob como este "Um defeito de cor" lançado em 2006 pela mineira Ana Maria Gonçalves. É um romançaço, em todos os sentidos, com suas quase 1.000 páginas, bem à lá século XIX (Balzac, Victor-Hugo e Tolstói): a história de uma personagem desde a infância até à morte, passando por todas as fases da vida de um indivíduo, entrelaçadas com as pessoas que fazem parte de sua vida (nível microssocial) e todas essas pessoas inseridas na história de um país e de uma sociedade (nível macrossocial).
Muita gente, incluso parte da crítica especializada, tem nesse romance um marco para compreender o Brasil do século XIX, o que é verdade. Porém, só é parcialmente verdade. A história de Kehinde (que significa a última a chegar no mundo), uma menina de oito anos que é raptada por homens duma tribo africana no Daomé (hoje Benim) em 1810 e vendida para mercadores europeus que a revendem no Brasil, embora tenha a história - a Grande História - como pano de fundo é um típico romance de formação, um bildungsgroman como se diz na crítica literária. Tenho para mim que o ponto forte da obra é a MATERNIDADE (assunto que raramente me interessa e que já fez me abandonar vários obras com o mesmo tema, exceto esta).
O livro, na minha experiência leitora, pode ser dividido em duas partes: a chegada de Kehinde (batizada Luisa) ao Brasil com oito anos de idade até o momento em que seu filho, Luís, com a mesma idade na qual ela fora raptada, é vendido pelo próprio pai (um português) para pagar dívidas de jogo. A partir daí, o tema central de sua vida é a busca pelo filho perdido. A originalidade e a contribuição aqui é que o tema da maternidade é tratado sob a ótica da mulher pobre e trabalhadora e não sob a ótica da mulher de classe média, comum à literatura brasileira (Clarice, por exemplo). A maternidade para as mulheres da classe trabalhadora não envolve apenas autossacrifício, como abandonar uma carreira, seguir a religião oficial e virar uma boa esposa, envolve mais coisas, em especial a violência sob tudo quanto é ângulo porquanto o pai é sempre ausente na criação desses filhos: o fracasso escolar do menino e a gravidez precoce da menina são exemplos do peso dessa ausência. Criar filhos (especialmente do sexo masculino), numa sociedade patriarcal sem a presença do pai é exigir demais de quem está com pé na ponte e outro no abismo.
Descrever o enredo assim é fácil, desinteressante até, mas o modo como a autora escreve e descreve suas personagens, narrando na primeira pessoa do singular, num português tão ritmado e com uma pontuação muito própria, é uma das coisas mais bonitas já escritas na língua portuguesa. Está à altura e nada deve aos grandes de nossa língua como Padre Vieira, Saramago, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Clarice Lispector etc. É uma obra que te leva para dentro e para fora tanto das personagens quanto da História acontecendo, e com tal equilíbrio que lembra muito a proposta de Flaubert para o que seria o romance moderno. Não há na escrita desta autora, nem narcisismo masculino nem vitimismo feminino, nem sadismo nem masoquismo em excessos, talvez por isso, por causa desse equilíbrio e recorte na construção das personagens e no estilo da escrita, a obra agrade e faz qualquer leitor(a) chegar à fruição estética, como se montando um quebra-cabeças até chegar ao prazer de encaixar a última peça e gritar: - Touché! - para si mesmo(a).
Até o momento, é a maior obra da literatura brasileira do século XXI.