Carlozandre 20/01/2014
Ficção da Desmemória
O filme Amnésia (2000) chamou a atenção para o talento do cineasta Christopher Nolan - mais tarde elogiado diretor das adaptações de Batman para o cinema. Montado em blocos narrativos ordenados de trás para diante, para dar ao espectador a mesma noção de desorientação na narrativa vivida pelo protagonista, trazia Guy Pearce como um cara que, após ser atacado por um criminoso e ficar à beira da morte, desenvolve uma condição neurológica que o impede de fixar memórias recentes. Tudo o que o sujeito vive e testemunha simplesmente desaparece de sua cabeça após um determinado período que agora não me lembro se era de sete ou de 15 minutos. Como ele está obcecado por encontrar o ladrão que matou sua esposa e o deixou naquela situação, ele toma notas obsessivas em polaroides que usa para se guiar na selva desmemoriada dos contatos cotidianos. Quando algo é de fato muito importante, ele tatua na pele como um lembrete. Apesar da engenhosidade e da qualidade narrativa do filme, há um furo básico de roteiro na história que somos convencidos a deixar de lado, já que Amnésia é tão bacana: o personagem toma notas e tatua mensagens para si mesmo porque sabe que sua memória é fugaz, mas mesmo esse conhecimento refere-se a uma condição posterior ao tal ataque. Logo, pelos próprios postulados narrativos do filme, passados 15 minutos (ou sete, faz tempo que vi o filme), ele não deveria lembrar de nada, inclusive do fato de não se lembrar de nada depois de sete minutos (ou 15, você entendeu).
Cito aqui esse episódio para mostrar como histórias envolvendo perda de memória recorrente podem ser tão intrincadas quanto as que abordam viagem no tempo, com o risco de deixar pontas soltas não importa o quanto o resultado seja bacana. Outra produção cinematográfica que lida com esse mote é um dos poucos filmes simpáticos e assistíveis de Adam Sandler: Como se Fosse a Primeira Vez (2004), no qual ele se vê condenado a cortejar dia após dia a mesma garota vivida por Drew Barrymore, vítima de um acidente de trânsito que também a deixa impossibilitada de manter memórias recentes depois de 24 horas. Todos os dias, mesmo anos após o acidente, ela acorda acreditando viver ainda a mesma manhã anterior ao desastre. Embora regido pela mesma lógica bobinha de qualquer comédia romântica, o filme se vê compelido a arranjar um final feliz que é, também, condizente com a proposta da memória: o casal fica junto, blá, blá, mas ela não recupera a memória perdida, e precisa ser relembrada todas as manhãs de que casou e já tem uma filha, e que a vida seguiu depois daquela manhã.
E por que falei de dois filmes em um blog de livros? Na verdade eu não estava falando necessariamente dos filmes, e sim da força existente na ficção da desmemória. Justamente por a memória ser uma ferramenta fundamental para a invenção da própria identidade, apagar a memória de um personagem ou impedi-lo de adquirir novas lembranças é levar a narrativa a um ponto de abismo que sempre provocará curiosidade e representará um desafio para que a história que se segue a esse recurso tão radical seja digno não apenas do recurso em si, mas da personagem vitimada por ele. É difícil dotar de dignidade um protagonista que não tem uma das ferramentas mais comuns à construção pessoal de qualquer dignidade: a possibilidade de selecionar, dentro de suas próprias memórias, aquelas que corroboram sua própria narrativa pessoal – o choque dessa narrativa com as narrativas dos outros é também um tema de eleição da grande arte por ser outro dos aspectos fundamentais da vida.
Antes de Dormir (Record, tradução de Ana Carolina Mesquita), thriller que marca a estreia literária do inglês S.J. Watson, é, a seu modo, outra obra a encarar esse desafio. É, podemos dizer, uma versão dark da premissa que Como se Fosse a Primeira Vez desenvolveu como comédia romântica – e acrescentando a dificuldade adicional de estar bastante consciente do furo de roteiro essencial em Amnésia: se você não guarda memórias novas, mesmo esse fato está fora de seu alcance. É o que acontece com Christine, a protagonista do livro. Já na primeira cena, ela acorda na cama com um homem que não conhece e sem lembrar de como chegou ali. O homem é grisalho e usa uma aliança – conclusão imediata: em consequência de uma noite bem pegada, ela foi para a cama com um homem casado. Numa escapada ao banheiro para tentar organizar as ideias, ela tem o verdadeiro choque: seu rosto, seu corpo, suas mãos, parecem ter amadurecido da noite para o dia:
“O rosto que vejo me olhando de volta não é o meu. O cabelo não tem volume e está bem mais curto do que costumo usar, a pele nas faces e sob o queixo é flácida, os lábios, finos, a boca, curvada para baixo. Dou um grito, um grito contido sem palavras que se transformaria em um berro de choque caso eu o deixasse sair, mas então noto os olhos. A pele ao redor deles está marcada com rugas, é verdade, mas apesar de tudo vejo que são os meus olhos. A pessoa no espelho sou eu, porém com vinte anos a mais. Vinte e cinco. Mais.”
Essa é apenas a primeira surpresa relacionada com os despertares de Christine. O homem que dorme a seu lado a coloca a par de tudo: ele se chama Ben, e a cada dia é obrigado a recontar a ela a história de ambos. Há fotos dela no banheiro, recados pendurados, alguns lembretes para que tal despertar seja mais suave, mas ainda assim, o choque é real. Depois que Ben sai para o trabalho, ela fica sozinha em uma casa que, para todos os efeitos, ela não conhece, munida de um telefone celular para emergências – embora ela não saiba muito bem o que é um celular sem que o marido explique, já que sua perda de memória parece anterior à popularização do aparelho. Só que a determinado momento, o celular toca. É um jovem médico com quem Christine vem se tratando, aparentemente às escondidas do marido. E ele a informa onde procurar um diário que ela vem mantendo há algumas semanas após cada dia de consulta. Depois que ela encontra o diário, a narrativa pula para as diversas entradas registradas nas páginas, cobrindo cerca de um mês antes da primeira cena, a que testemunhamos e que abre o livro.
Cada entrada, narrada também em primeira pessoa, acrescenta uma camada de dúvidas e de versões sobre a história de Christine: ela ficou sem memória depois de ser atacada em um hotel, onde havia ido esperar o marido para um encontro romântico. Não, talvez não fosse o marido, e sim um amante. Talvez a abnegação do seu marido, que tem cuidado dela desde então, tenha um pouco de vingança pelo ultraje? Ela teve ou não um filho – cujas evidências parecem ter sido apagadas? Por que ela parece ter se afastado de sua melhor amiga, e que relação isso pode ter com sua condição? Quem é o jovem doutor Nash, que a vem aconselhando a manter o diário. É um homem desinteressado ou tem sua agenda secreta? Por que ele vem sendo mantido escondido de Ben mesmo que o tratamento de registrar as lembranças pareça estar dando resultado, uma vez que algumas memórias sem referência clara às vezes boiam até a superfície?
São vários os desafios, como comentamos, desse tipo de narrativa. Como a história é também uma trama de suspense, a “trama se complica”: a estrutura básica de uma história de suspense é que a cada momento uma nova peça para a montagem do quebra-cabeça é apresentado ao leitor por meio do juízo avaliativo do detetive (e um bom leitor por vezes discorda desse juízo, chegando antes do fim do livro à resolução do mistério). Só que neste caso, a figura que seria a do detetive é também a da vítima: Christine só tem acesso às descobertas que anota em seu diário, e a escrita é a versão depurada do que ela viu ou viveu. E ela não tem como manter anotações de toda a sua vida, até porque depois de um determinado tempo tais anotações se tornariam inúteis porque ela não teria como ler tal massa de material escrito. O que Christine tem não é um juízo avaliativo, uma vez que seu conhecimento das pessoas que compõem sua vida presente parece ser nulo: ela tem apenas (e portanto, também o leitor, uma vez que o livro é narrado em primeira pessoa por Christine, no presente e nos diários) relatos de alguns fatos passados e versões para as perguntas mais importantes da narrativa.
Watson se sai bem desse labirinto que criou para si mesmo, embora um recurso utilizado ao fim da história para que Christine – e o leitor – tenha finalmente um quadro completo de tudo o que aconteceu com ela comprometa um pouco a solidez da narrativa por lembrar um artifício de desenhos animados da Hannah Barbera. Ainda assim, a forma como determinadas coisas ficam necessariamente em aberto ao fim do livro (leia e você vai entender) está de pleno acordo com o desenvolvimento da narrativa. E o autor consegue valer-se com competência do fato de que alguém sem memória, e portanto sem a capacidade de saber quem é, se torna extremamente frágil.
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