Acabadora

Acabadora Michela Murgia




Resenhas - Acabadora


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Paty 27/05/2014

Um discurso poético sedutor, pois obriga o leitor a ponderar sobre seu posicionamento sobre dignidade humana, na vida e na morte. Um belo texto.
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Pandora 17/06/2023

“Quando se tem tempo, até a raiva se organiza.“ pág. 77

“As culpas, como as pessoas, começam a existir apenas quando alguém as percebe.” - pág. 136

Em Soreni, um vilarejo fictício na Sardenha dos anos 50, Maria Listru é a quarta filha de Anna Teresa, cujo marido havia morrido num acidente de trabalho, deixando a família já pobre na miséria. Maria é então dada a Bonaria Urrai, uma senhora solitária e calada, mas muito respeitada no povoado, cujo ofício principal é ser costureira. Porém, Bonaria exerce uma outra atividade importante: ela é uma acabadora, “aquela que faz o sofrimento cessar”.

Esse ofício de Bonaria, de facilitadora da morte, nunca é discutido abertamente, mas é sabido pelos adultos da cidade. Apesar de ser uma comunidade pequena, que poderíamos imaginar antiquada e cristã e que provavelmente condenaria a prática da senhora, Soreni é uma comunidade religiosa, mas que mantém alguns cultos pagãos de colheita e boa sorte, de respeito a tradições ligadas à natureza, aos ciclos de vida e morte.

Maria cresce sendo a filha d’alma (como eram chamadas as filhas adotivas) de Bonaria, mas a chama de tia como todos na cidade, embora se sinta muito mais próxima dela do que de sua mãe biológica. Ela é incentivada por Bonaria a estudar e aprender e vai muito bem na escola, apesar de na cidadezinha a maioria dos habitantes achar inútil o estudo para uma mulher. Mas a tia quer que a garota esteja preparada para um futuro, inclusive sabendo o italiano, já que ali só falam o sardo.

Com o passar dos anos, ela vê a tia saindo às vezes na calada da noite, mas não tem ideia do porquê e quando pergunta, nunca tem uma resposta satisfatória. Até que um dia, da pior forma possível, ela descobre a verdade. Criada com valores, mas também extremamente protegida, Maria não aceita que a verdade lhe tenha sido ocultada por tanto tempo e rompe com a mãe adotiva.

Nesta narrativa preciosa, a maternidade tem significados que vão além de mãe e filha, como quando, no confronto, Bonaria diz à Maria: “Meu ventre nunca se abriu (…). Eu também tinha meu papel a cumprir, e cumpri. (…) Eu fui a última mãe que alguns viram.” - págs. 110/111.

Mais tarde, Maria também tem a oportunidade de exercer um tipo de maternidade, mas fico por aqui porque já escrevi demais.

Notas: Não há consenso se as acabadoras realmente existiram ou são parte de uma lenda. Há um texto sobre isso, Série tradições culturais: mito “sa femmina accabbadora”, no blog Sardegna Terra Mia, para quem se interessar. Para quem lê em italiano, há um artigo bem detalhado chamado S’Accabadora, la portatrice di morte tra mito e realtà, no blog Oltre i Muri, que cita inclusive um museu em Luras, na Sardenha, que exibe, entre outras coisas, o que seriam trajes e objetos de uma acabadora.

Há um filme chamado L’accabadora, de 2015, dirigido por Enrico Pau, porém segundo li, não tem relação com o livro de Michela Murgia.
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Ladyce 20/07/2013

A dignidade na vida e na morte
Não me surpreende que Michela Murgia tenha ganhado diversos prêmios literários na sua terra natal, a Itália, com o livro “Acabadora”. Sua escrita é poética, sensível, retrata uma realidade que sabemos verdadeira apesar de parecer um sonho enevoado e o faz com sedução, guiando o leitor pela mão, a ponderar sobre a vida, seu valor; sobre o que é bondade; a morte, a traição, a eutanásia e a dignidade humana.

Passado em uma pequena vila da Sardenha, na década de 1950, o romance está centrado nas figuras de Bonaria Urrai e Maria Listru. Maria foi adotada. Quarta filha de uma família pobre com muitos filhos é dada à Bonaria para educá-la. Bonaria tem uma vida dupla de costureira durante o dia e de facilitadora da morte, para aqueles que se encontram em seus últimos momentos de vida. Este segundo ofício é conhecido e aceito por todos os habitantes do vilarejo. Mas não é falado. Assim Maria cresce sem saber da delicada profissão noturna de sua mãe adotiva. Bonaria é uma boa mãe. Educa Maria em casa e na escola. Tira-lhe o hábito dos pequenos roubos. Incentiva-lhe a aplicação aos estudos. Mas espera o momento apropriado para contar á Maria o que faz nas noites em que sai de casa. Maria descobre antes de Bonaria lhe contar. Descobre por outros, e sentindo-se traída, quando se vê como a única no vilarejo que não conhecia o ofício de Bonaria, não perdoa a velha senhora. E se afasta. Há pelo menos dois sentimentos que Maria tem que resolver: o desgosto pelo que Bonaria faz, e a traição.

O mais interessante dessa narrativa é que não somos levados a questionar a retidão de caráter de Bonaria. Ela é dura, honesta, resistente à adversidade, rígida, fiel a seus princípios morais. Conhecedora, como ninguém, dos personagens do vilarejo, Bonaria não tem dúvidas sobre a necessidade de seu ofício. E não vacila ao aplicar a sua ética. Os vizinhos concordam em silêncio, assim como todas as outras pessoas no vilarejo. Bonaria, afinal, traz paz aos que dela necessitam. Bonaria, no entanto é seduzida a se desviar de sua ética uma única vez, e é justamente nesse momento que Maria descobre a profissão de sua mãe de criação.

A rejeição de Maria à Bonaria é imediata. Mas por muito tempo ficamos sem saber se esta rejeição é por se sentir traída, não sabendo tudo sobre sua mãe de criação, ou se é por rejeição completa ao ofício de Bonaria. Não importa, eventualmente, Maria chega a uma solução que não desmerece tudo que aprendeu com a velha senhora. E faz as pazes com os parâmetros de sua existência.

A minha reserva quanto ao livro está justamente nos capítulos em que Maria, deixando a Sardenha, consegue um emprego como babá. Não pareceram viáveis. Foi uma maneira da autora resolver alguns conflitos internos de Maria, mas os personagens não parecem críveis, não convencem. Pena. Cento e sessenta páginas e um discurso poético que seduz, encanta e corta, pois obriga o leitor a ponderar sobre seu posicionamento sobre dignidade humana, na vida e na morte. Sobre a dignidade da vida quando o ser humano sofre uma limitação física acabrunhadora. Um belo texto.
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Breno Torres 13/04/2014

Uma literatura de qualidade.
Além de ser um livro italiano e que fale sobre a Itália tradicional do século passado (eu sou perdidamente apaixonado por esse país e estou sempre tentando aprender de forma quase assustadora sobre o mesmo), o livro nos traz um enredo que simplesmente me arrebatou: uma garotinha, Maria, que, rodeada pela realidade de uma Sardenha supersticiosa e enovelada de regras e tradições antigas, é adotada pela misteriosa e poderosa Bonaria Urrai, uma mulher possuidora de uma estranha e quase macabra posição, se não uma função, tradicional no lugar onde vive. Os destinos dessas duas mulheres, presos a uma realidade e a eventos e acontecimentos dramáticos e poderosamente incisivos em suas vidas, personalidades e formas de pensar e agir, são desenvolvidos numa trama imponente, firme e arrebatadora por Michela Murgia – mulher que se tornou uma das autoras mais brilhantes que existem, na minha concepção.

Foi só depois que pedi que comecei a ler que me dei conta de que algo me angustiava em relação ao livro de Murgia: seu tamanho. Pela percepção que tive do enredo, simplesmente não conseguia imaginar como aquela mulher italiana conseguiria desenvolver um enredo tão poderoso como aquele em irrisórias 154 páginas. Eu realmente estava temeroso: o livro que minha amiga havia me dado com tanto carinho, no meu pensamento bobo, poderia se tornar uma grande decepção por não ter um enredo tão bem desenvolvido por conta do tamanho do livro. Eu não conseguia enxergar como Murgia conseguiria dar a tudo seu tempo e sentido em tão poucas páginas – simplesmente não conseguia. Mas é claro que eu estava sendo um completo melodramático, como percebi com o passar das páginas: Michela Murgia é uma mestra na adequação de tempo e espaço em enredo – ao menos foi, nesse livro que li. Isso pode parecer um ponto bobo para se sublinhar numa resenha, porém isso para mim é algo extremamente importante e deve ser tratado com muito cuidado. Já tive antes experiências com livros que, talvez por sua pressa em se adequar a certa quantidade de páginas “querida” pela maioria massiva dos leitores (de duzentas a trezentas páginas) – ou realmente por preguiça do escritor, sabe-se lá –, acabaram se tornando desastres melindrosos por não conseguirem dar um ritmo adequado ao que sua história pedia. Murgia soube fazê-lo com magnitude. Poucas vezes vi um livro tão completo, nesse sentido (menos vezes ainda com livros de menos de duzentas páginas; talvez seja o primeiro).

Acabadora é um livro rico, que retrata um drama familiar numa realidade interiorana, portanto cheio de demonstrações – retratadas de forma belíssima e fidedignas – da forma com que o universo nesse tipo de realidade funciona. Não se deve esperar de um livro assim floreios modernos e contemporâneos, em questão de tempo e espaço do enredo; espere o retratar do simples pensamento de uma cidade pequena, a complexidade das teias que formam as tradições seculares seguidas por habitantes de uma realidade como essa. Esperem o retratar de questões comuns pelo imaginário popular de uma Itália rural da segunda metade do século XX, o trabalho com a demonstração do sentimento e da psique de diversos personagens e caricatos comuns dessa época e habitualidade. Essas são coisas que verdadeiramente se podem encontrar no livro de Murgia.

Além, é claro, de uma escrita digna de ser aplaudida de pé. Tão belamente ornamentada, a escrita de Michela Murgia é serpeada por belas colocações de palavras e adjetivos – belas, não cansativas. É realmente bem chato quando um escritor isso faz para apenas embelezar o texto ou torna-lo pseudointelectual. Murgia não: sua escrita é natural, delicada, e realmente flui: é um livro que pode ser lido, dependendo do ritmo de leitura de cada um e identificação com o texto, com calmaria e prazer. E melhor, para aqueles que gostam de logo terminar leituras: como já dito, pequeno. Cento e cinquenta e quatro páginas, apenas.

A pequena grande obra de Michela Murgia, Acabadora, indubitavelmente é uma obra que não só superou expectativas, mas que também inspirou, instigou e, mais que tudo: ensinou. Sobre a Itália, sobre os costumes de uma vida tradicional, sobre bucólicos e sombrios costumes populares e sobre o quanto que a vida e a morte são fatores tanto relevantes quanto cruciais para a transformação de pessoas e seus destinos.



site: http://achouoque.blogspot.com.br/
ritita 06/07/2017minha estante
Exatamente pelo fato de saber condensar tão bem a história, o livro me apaixonou.




Dilalilac 18/03/2024

A Alfaguara costuma me trazer gratas surpresas
A escrita é bonita e de realidade simples, com costumes que flertam com o misticismo. Fala muito sobre o certo e o errado, sobre o quão certas e erradas são as coisas e até que ponto existe diferença entre elas.
A ambientação foi muito bem feita, me lembrou as cidades do interior daqui do Brasil.
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Aldeizia 12/09/2016

Como pode caber tanta literatura em tão poucas páginas?
Então...cada leitor vai ter uma experiência diferente de acordo com a sua cultura, religião, valores.
Com uma escrita poética e simples, Michela aborda assuntos extremamente difíceis, angustiantes e polêmicos. De dilemas adolescentes até assassinato e abuso infantil, o conteúdo é inacreditavelmente rico e bem trabalhado.
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Gy de Paula 15/06/2018

Uma estória sem grandes pretensões, mas com uma imensidão de sentimentos
Eu nem sabia que existia esse livro em português. Acabei descobrindo em minhas pesquisas pós leituras.
Em Acabadora Michela Murgia conta a estória de Maria Listru, filha d'alma de Bonaria Urrai, e se passa em Soreni, cidadezinha fictícia da Sardenha, umas das regiões nas quais se divide a Itália, durante os anos 50.
Filha d'alma é aquela fruto de uma mãe pobre e de outra estéril. Sendo a quarta das filhas de uma pobre viúva, Mariedda (diminutivo sardo para Maria) é adotada por dona Bonaria, que tem melhores condições financeiras de manter a criança.
Bonaria é sarta por profissão e "acabadora" por falta de opção. Como ela mesma diz, certas coisas a gente não escolha.
"Accabadora" é um termo sardo que se refere àquela que pratica a eutanásia.
Em tempos de difícil acesso a bons centros de saúde, diz a lenda, que a eutanásia de pessoas muitos doentes era uma opção de uso recorrente. A família, certa da situação irrecuperável e sofrente do enfermo, chamava a "accabadora" que colocava fim às agonias tanto do doente quanto das famílias.
Sem saber desse "ofício" de Bonaria, Mariedda cresceu com sua mão d'alma em um ambiente rústico e cercado por mistérios.
A escrita de Michela mais do que um conto é uma poesia. Ela declama uma estória cheia de sentimentos. Em alguns momentos me peguei de olhos arregalados e com o coração quase parando.
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DêlaMartins 15/01/2023

História bonita
Li "A acabadora" em 2016 e, arrumando minhas estantes, encontrei o livro com minhas impressões anotadas na contracapa. Mais esta resenha vai para o meu histórico do Skoob.

A história é muito bonita. Trata de Maria, adotada por Bonaria aos 6 anos. Essa nova mãe (mãe d'alma), dá oportunidades para a filha, ensinando a arte da costura e preparando a menina para a batalha da vida, sem deixar que a filha saiba o que ela faz, além da costura. Todos sabem que Bonaria é uma acabadora, aquela que faz o sofrimento cessar, ajudando o destino a se cumprir. O foco central é a surpresa de Maria, que ao crescer descobre o que Bonaria faz. As dúvidas que tem sobre o assunto, aliada ao surgimento do primeiro amor são bastante envolventes. .

É uma história de amor de mãe e filha, surpreendente, carinhosa, sem ser melosa. Livro rápido, fácil de ler. Recomendo.
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mpettrus 13/11/2020

A mais carismática das Acabadora
Conhecer a literatura da escritora italiana Michela Murgia foi de uma grata surpresa e que se mostrou em três dias de leitura muito prazerosa.

Entramos no mundo de Sardenha, em um vilarejo chamado Soreni. E a identificação com os costumes da minha própria cidade (Macapá - AP) foram imediatas. Os costumes de respeitar os mistérios da Vida, o sacerdote com aquela Áurea de sabedoria sobrenatural e as carpideiras foram detalhes que me conquistaram.

A própria velha Bonaria Urria lembrou-me de muitas velhas da minha própria família. Não que elas fossem uma Acabadora, não que eu saiba, pois existem segredos na minha família que só saberemos depois de muitos anos que o detentor já morreu.

A história contada em 160 páginas, parece singela e rápida, mas ao mesmo tempo é muito profunda. Ela busca fazer você refletir sua relação com a morte. Com a morte do outro e com a sua própria morte. E a história gira em torno desse epicentro.

A velha Bonaria é uma personagem carismática. Apesar de ser uma Acabadora, me encantou a sua dignidade, a sua precisão com as palavras, e sobretudo, a sua ética diante do moribundo.

Singela, profunda e reflexiva, ?Acabadora? merece ser lida por nos trazer à baila temas como a morte, o carma e a solidão da velhice.

????
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Picón 23/04/2021

Bom
Bom livro. Aborda uma tradição comum em várias culturas no mundo: a parteira ao contrário. Mostra a relação dessa "parteira" com sua aldeia e principalmente com sua "filha".
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Renata.Borges 18/04/2022

Sequência forte apresentada de forma branda
Romance italiano vencedor de dois prêmios por lá.

A trama se passa na década de 1950, na Sardenha. Maria Listru torna-se filha d´alma da costureira Bonaria Urrai, que é uma mulher misteriosa e reservada. Sempre que apareceram diálogos envolvendo Bonaria, eu sentia que vinha faltando alguma informação, que havia algum mistério.

A obra é interessante, bem escrita e que permite a reflexão sobre temas controversos como culpa, dignidade, direito de viver ou morrer, eutanásia, empatia, compreensão.

No vilarejo todos se conheciam, todos sabiam tudo o que se passava, e através da leitura podemos conhecer um pouco mais da cultura e hábitos desses vilarejos logo após a II guerra.

Toda a trama gira em torno do mistério que é Bonaria, a acabadora; ou seja aquela que acaba com o sofrimento de alguém, e ser acabadora não é um pecado; e sim atuar com caridade. Todos na aldeia conhecem seu ofício.

A trama tem sequência forte, mas é escrita de forma branda. As personagens são bem caracterizadas, apesar do livro não trazer muitas descrições, assim como também podemos conhecer o vilarejo, sem grandes parágrafos descritivos. Interessante!

A crítica a esta obra é muito boa, e eu acabei me surpreendendo e gostando bastante!
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Manu 23/05/2014

"Acabadora", Michela Murgia
"Acabadora" (no original: "Accabadora"), publicado em 2009, é de autoria de uma escritora italiana, nascida na Sardenha, chamada Michela Murgia. Por enquanto, esse é seu único romance publicado no Brasil, pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, com tradução de Federico Carotti e Denise Bottmann. O romance, muito bem recebido na Itália, recebeu dois prêmios: o Campiello (prêmio já concedido, por exemplo, a Primo Levi e a Antonio Tabucchi) e o SuperMondello.
Romance contemporâneo, mas no qual, como consta na capa da edição brasileira, "'Murgia recupera a paisagem social e a tradição de sua Sardenha natal.'"
Na verdade, embora situado e ambientado em época e lugar específicos - a década de 1950 na Sardenha, com as tradições e os costumes de então -, o livro acaba por extrapolar os limites espaço-temporais ao focalizar as personagens menos pelos acontecimentos externos e mais por suas vivências emotivas em relação a esses acontecimentos.

A acabadora do título é Bonaria Urrai, uma costureira já velha, viúva e sem filhos, que, quando é noite em Soreni, desempenha sua segunda função: acabar com o sofrimento de pessoas já à beira da morte. Bonaria adota Maria Listru (filha última e indesejada de outra viúva, Anna Teresa Listru, que, além de Maria, tinha três outras filhas) como filha d'alma: "É assim que se chamam as crianças geradas duas vezes, pela pobreza de uma mulher e pela esterilidade de outra. Maria Listru era filha deste segundo parto, fruto tardio da alma de Bonaria Urrai." (p. 7) Os filhos d'alma não são exatamente separados dos pais biológicos, pois podem conviver com eles, mas passam a ter uma segunda família.

A história é bastante curta (a edição brasileira tem 154 páginas no total), e as personagens não são desenvolvidas muito profundamente (há sempre a sensação de que há muito mais escondido do que exposto), mas suas emoções são tão sinceras, tão verdadeiras, tão humanas, que elas, apesar de não nitidamente delineadas, mas pinceladas com algumas sombras pela escritora, estão intensamente vivas; e, para que seja assim, Murgia escreve os diálogos certos, e todos eles essenciais, de maneira que não há desperdícios: quando preciso, as personagens gritam; quando preciso, falam; quando preciso, calam. E o silêncio, que é recorrente no livro, representa as ausências, que são muitas ("Quem nasce órfão logo aprende a conviver com as ausências", p. 94).

"- A senhora é filha de quem, tia? - perguntou um dia, com a boca cheia de sopa.
- Meu pai se chamava Taniei Urrai, era aquele senhor ali...
Bonaria indicou a velha foto polida, pendurada em cima da lareira, onde Daniele Urrai, empertigado em seu colete de veludo, aparentava talvez uns trinta anos e podia parecer qualquer coisa à menina, menos o pai da velha diante de si. Bonaria leu a incredulidade no rosto rosado.
- Ali ele era moço, eu ainda não tinha nascido - explicou ela.
- E mãe, a senhora não tinha? - insistiu Maria, a qual, evidentemente, não possuía uma grande intimidade com a ideia de que os filhos pudessem ter pai.
- Claro que tinha, chamava-se Anna. Mas ela também morreu muitos anos atrás.
- Como meu pai - acrescentou Maria, séria. - Às vezes eles fazem isso.
Bonaria ficou surpresa com aquele comentário.
- Fazem o quê?
- Isso. Morrem antes que a gente nasça - Maria respondeu paciente. Depois acrescentou de má vontade: - Foi a Rita que me disse, a filha de Angela Muntoni. O pai dela também morreu antes.
Durante a explicação, a colher se agitava no ar como o arco de um instrumentista.
- Sim, alguns fazem isso. Mas nem todos - disse Bonaria, observando-a com um sorriso vago.
- É, nem todos - concordou Maria. - Pelo menos um tem que ficar. Para as crianças. É por isso que sempre é um casal de pais.
Bonaria concordou, colocando a colher na sopa, crente de que tinham terminado a conversa.
- Vocês eram em dois?
Por fim Bonaria entendeu e, sem parar de comer, falou no tom quase casual que tinha usado até aquele momento.
- Sim, éramos em dois. Meu marido morreu também.
- Oh, morreu... - repetiu Maria depois de um instante, indecisa entre o alívio e o desgosto.
- Sim - disse Bonaria, séria por sua vez. - Às vezes fazem isso." (p. 11-12)

O desfecho do livro, na verdade, não é exatamente inesperado, e, a meu ver, há alguns recursos que, me parecem, estão ali para possibilitarem uma saída fácil na resolução de alguns problemas. Mas Michela Murgia é muito feliz na composição de sua trama e presenteia o leitor com imagens tão lindas, que não é difícil o surgimento de uma relação afetiva no momento da leitura. Embora nem tudo das personagens esteja entregue ao leitor, essas personagens são conhecidas intimamente por quem narra a história, e essa história é narrada com muita candura, com muita delicadeza e de maneira cativante.

A cena que mais me marcou foi a cena em uma loja, em que Bonaria vê Maria, ainda com seis anos, roubando cerejas de um cesto e as escondendo no bolso do vestido branco:

"- Não a viu chorar naquela manhã na loja, enquanto a mãe se mortificava em encontrar palavras que explicassem aquele seu comportamento selvagem, aquela ânsia dos sentidos que se convertia em furto com uma frequência muito maior do que a fome pudesse justificar.
- Melhor seria se nunca tivesse nascido, sabem os céus que três já me bastam na minha condição...
E tampouco aquele aborto retroativo despertou alguma reação visível no rosto de Maria. Ela ficou imóvel com a inconsciência indolor de quem nunca nasceu de verdade, enquanto no tecido branco do vestido começava a florir a cor das cerejas roubadas, correspondendo ao bolso direito. Um vermelho que se espraiava como uma chaga, e em alguns pontos era quase negro. Aquela mancha parecia a única coisa a se mover nela, uma obscena menstruação de fruta. A dona da loja foi a primeira a notar.
- Você pegou cerejas do cesto?
Anna Teresa Listru se deu conta do furo na roupa da filha enquanto a bofetada já chegava ao seu destino. A menina fechou os olhos apenas durante o instante do golpe, depois reabriu e o olhar ficou parado, uma mão ferozmente enterrada no bolso exasperando a mancha externa. As lágrimas estavam ali, mas não desceram.
- Giulia, me desculpe, não sei o que dizer, ponha na minha conta...
- Imagine, acontece, são crianças - minimizou a comerciante atrás do balcão. - Mas certamente aquela mão malandrinha... - acrescentou malévola num meio sorriso.
Mais que tudo, foi principalmente aquele vermelho no bolsinho bordado que fez Bonaria Urrai pensar que talvez o tempo da esterilidade tivesse chegado ao fim, e não se passou uma semana para ir conversar com Anna Teresa Listru sobre a possibilidade de adotar Maria como filha d'alma." (p. 136-137)

Achei tão bonito que, embora Bonaria tenha adotado Maria e se tornado sua segunda mãe, a mancha das cerejas no tecido do vestido de Maria, simbolizando o sangue, sugira que foi Maria quem deu à luz essa maternidade. E isso será retomado posteriormente, nas decisões que Maria precisará tomar.

"- Maria, você é filha de quem?
A mocinha não esperava por essa. Calou-se por um momento tentando ver qual era a armadilha da pergunta, e optou pelo seguro.
- De Anna Teresa e Sisinnio Listru...
- Certo. Mas onde você vive?
Desta vez Maria percebeu a armadilha e tentou ganhar tempo.
- Vivo em Soreni.
- Maria - advertiu Bonaria arqueando as sobrancelhas. A menina teve de ceder.
- ... Vivo aqui com a senhora, tia.
- Portanto, você vive separada de sua mãe, mas continua a ser filha dela. Não é assim? Não vivem juntas, mas são mãe e filha.
Maria ficou quieta, um pouco humilhada, abaixando os olhos para os joelhos, querendo se consolar com o abecedário onde cada coisa tinha um lugar, e um lugar só. O sussurro saiu leve como um sopro.
- Somos mãe e filha, sim... mas não como uma família. Se fôssemos uma família, ela não teria feito um acordo com a senhora... isto é, eu acredito que a senhora é minha família. Porque nós duas somos mais próximas." (p. 25-26)
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Kamila 21/12/2015

Acabadora conta a história da jovem Maria Listru, mais uma das filhas d'alma (filha adotiva), algo bem comum no pequeno povoado de Soreni, na Sardenha, Itália. Aos seis anos, a caçula das quatro filhas de Anna Teresa, viúva de Sissinnio Listru, foi dada em adoção para a costureira Bonaria Urrai. Bonaria era uma mulher de avançada idade, o que causou espanto na pequena comunidade, que via com maus olhos o fato de que uma idosa adotara uma menina. Mas o tempo passou e a comunidade de Soreni se esqueceu de Maria e Bonaria Urrai.

Maria cresceu e aprendeu o ofício de costureira. Também ia à escola e tirava boas notas, mas Bonaria Urrai não se importava com isso.

Em uma noite qualquer, Maria ainda pequena e não acostumada com a casa de Bonaria, não conseguia dormir. Acabou percebendo que Bonaria Urrai ia sair de casa acompanhada de um homem. Sua curiosidade de criança fez com que Maria se levantasse da cama para descobrir quem era o tal homem, mas Urrai percebeu que Maria tinha se levantado e imediatamente mandou voltá-la a cama. No dia seguinte, o vizinho apareceria morto. Maria iria se esquecer desse acontecimento, mas o evocaria anos depois.

O que Maria não sabia é que a velha Bonaria costurava durante o dia e de noite tinha um segundo serviço, digamos, mais obscuro. Bonaria Urrai era a Acabadora. Sempre a chamavam para terminar de matar quem encontrava dificuldades para morrer – isso não é spoiler, está escrito na orelha de trás do livro, mas com outras palavras.

A leitura é muito recomendada porque Michela traz para o leitor como viviam as famílias nos povoados italianos distantes. Pra começar, estamos na década de 50 e os sardos (naturais da Sardenha, claro) são sardos, não italianos. Não se consideram italianos nem quando vão para o continente lutar na Segunda Guerra Mundial, mas são obrigados a ir, como foi o caso de Raffaele, o amor de Bonaria Urrai. Ele foi e não voltou. Se eles não se consideram italianos, logo sequer falam italiano, só a pura língua sarda – italiano só na escola. Além disso, as famílias de Soreni são unidas, como provavelmente eram (e talvez ainda sejam) as famílias de Cabras, ainda na Sardenha, terra natal da autora. Quando um morre, todos choram o morto, por pior que seja o morto, como é o caso de Nicola Bastiu, que você conhecerá quando ler o livro. Michela quis trazer para o leitor um pouco de sua própria vida na Sardenha.

resenha completa em:

site: http://resenhaeoutrascoisas.blogspot.com.br/2015/03/resenha-acabadora.html
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Josie 28/10/2019

Acabadora é um lembrete a mim mesma: não subestime um livro pelo tamanho.

Que forte, que prosa bem feita, que prazer
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