Larissagris 08/10/2023MRS. DALLOWAY (VIRGINIA WOOLF)A partir de agora, nunca mais diria de ninguém que a pessoa era isto ou aquilo. Ela se sentia muito jovem; ao mesmo tempo, inconcebivelmente velha. Passava por tudo como uma faca afiada; ao mesmo tempo, ficava de fora, contemplando. Tinha uma sensação permanente, olhando os táxis, de estar longe, longe bem longe no mar e sozinha; sempre era invadida por essa sensação de que era muito, muito perigoso viver, ainda que por um dia. (Pág. 28)
Fazia alguma diferença então, perguntou-se, caminhando em direção a Bond Street, fazia diferença se ela inevitavelmente iria deixar de existir por completo; mesmo com sua ausência, tudo isto vai continuar; era algo para se lamentar, ou havia consolo em ver na morte o fim de tudo? (Pág. 29)
Como ansiava por isso - que as pessoas se alegrassem ao vê-la -, pensou Clarissa, fazendo meia-volta e retomando a direção de Bond Street, acabrunhada, pois era ridículo fazer algo com segundas intenções. Preferia muito mais ser uma dessas pessoas como Richard, que fazem as coisas por elas mesmas, ao passo que, na metade das vezes, refletiu enquanto esperava para cruzar a rua, ela não fazia as coisas simplesmente, sem outros motivos; e sim para que as pessoas pensassem isto ou aquilo; o que era uma rematada tolice, bem o sabia (agora o guarda ergueu a mão), pois nem por um instante os outros se deixavam enganar. (Pág. 30)
Nenhum ciúme vulgar podia afastá-la de Richard. O que ela temia, porém, era o próprio tempo, e lia no rosto de Lady Bruton, como em um relógio de sol talhado em pedra impassível, que a vida ia se reduzindo; como, ano após ano, sua porção se reduzia; o quão pouco lhe restava daquela margem capaz de se estender, de absorver, como na época da juventude, as cores, os sais, os tons de existência, permitindo-lhe preencher os aposentos em que entrava, e muitas vezes sentir, ao hesitar no limiar de sua sala, uma ligeira expectativa, igual à que poderia tomar conta de um mergulhador antes de saltar, enquanto lá embaixo o mar escurece e clareia, e as ondas ameaçam quebrar, mas apenas se dividem suavemente na superfície, avançam, recobrem e conferem um matiz perolado às algas que acabam de ser revolvidas. (Pág. 52)
Ela fazia ideia do que lhe faltava. Não era a beleza; nem a inteligência. Era algo central que se irradiava; algo caloroso que rompia as superfícies e agitava o frio contato entre homem e mulher, ou entre duas mulheres. (Pág. 53)
Assim era ela - aguçada; como uma seta; definida. Assim era quando um esforço, uma convocação para ser ela mesma, juntava suas partes, só ela sabia o quão diversas, o quão incompatíveis, e as arranjava para o mundo em torno de um único centro, um diamante, uma mulher que se sentava em sua sala e fazia desta um local de encontro, certamente uma radiância para algumas existências opacas, um refúgio onde podiam se abrigar os solitários, talvez; (Pág. 59)
Havia sempre algo frigido em Clarissa, pensou. Sempte tivera, mesmo jovem, uma espécie de timidez, que na meia-idade costuma virat convencionalismo, e aí acaba tudo, acaba tudo, pensou [...] (Pág. 72)
Com o dobro da inteligência do marido, era obrigada a ver as coisas pelos olhos de Dalloway - um das tragédias da vida matrimonial. (Pág. 101)
Ela tinha um senso de humor muito sutil, mas dependia dos outros, sempre dos outros, para trazê-lo à tona, e por isso acabava desperdiçando seu tempo, almoçando, jantando, organizando essas festas incessantes, falando bobagens, dizendo coisas em que não acreditava, embotando sua capacidade de discriminação. (Pág. 103)
A vantagem de envelhecer, pensou Peter Walsh, saindo do Regent's Park com o chapéu na mão, era só esta: as paixões permaneciam tão fortes quanto antes, mas a gente dispunha - por fim! - daquele poder que confere o sabor supremo à existência - o poder de agarrar a experiência, de examiná-la por todos os lados, lentamente, sob a luz. (Pág. 104)
Terrível, essa confissão (colocou de novo o chapéu), mas agora, aos cinquenta e três anos, o fato é que não se necessita tanto dos outros. A própria vida, cada um de seus momentos, cada gota dela, aqui, este instante, agora, sob o sol, em Regent's Park, era mais que suficiente. Na verdade, era até excessiva. Uma existência inteira era pouco para fazer aflorar, agora que havia alcançado tal poder, o sabor pleno; para extrair cada grama de prazer, cada nuance de sentido; e ambos eram muito mais sólidos do que costumavam ser, muito mais impessoais. (Pág. 104)
Qualquer um, sendo sincero, diria o mesmo; depois dos cinquenta, não se necessita de ninguém; não há mais vontade de continuar dizendo às mulheres o quanto são belas; isso é o que diria a maioria dos homens com mais de cinquenta, pensou Peter Walsh, se fossem sinceros. (Pág. 105)
Pois a verdade (mesmo que ela a ignore) é que os seres humanos não têm nenhuma bondade, nem fé, nem caridade além daquilo que serve para aumentar o prazer momentâneo. Eles caçam em matilhas. Suas matilhas varejam o deserto e desaparecem uivando no horizonte desolado. Eles abandonam os que tombam pelo caminho. Têm o rosto deformado por esgares. (Pág. 115)
Infelizmente; as pessoas mais importantes para nós não nos fazem bem quando caímos doentes. (Pág. 123)
Pois pretendia dizer isso com todas as palavras, assim que entrasse na sala. Porque é mil vezes lamentável jamais exprimir o que se sente, pensou, [...] (Pág. 143)
Uma oferenda pelo simples prazer de oferecer, talvez. Seja como for, esse era seu dom. Para ela, nada mais era assim tão importante; não conseguia pensar, nem escrever, tampouco tocar piano. Confundia armênios e turcos; adorava o sucesso; odiava o desconforto; necessitava ser apreciada; conversava bobagens sem fim; e até hoje, se lhe perguntassem o que é o equador, não saberia dizer. (Pág. 150)
Cretina! Estúpida! Você nunca conheceu o sofrimento nem o prazer, você desperdiçou sua vida. (Pág. 153)
O amor também destruía. Acabava com tudo o que era refinado, tudo o que era verdadeiro. (Pág. 155)
Mas por que toda essa vontade de se assemelhar a ela? Por quê? Ela desprezava Mrs. Dalloway do fundo do coração. Ela não era séria. Não era boa. A vida dela era uma trama de vaidade e engano. (Pág. 157)
[...] esse é o privilégio da solidão; na intimidade, pode-se fazer o que quiser. Daria até para chorar longe dos olhares alheios. Essa fora sua desgraça - essa suscetibilidade - nos círculos anglo-indianos; não chorar no momento adequado, ou tampouco rir. (Pág. 181)
Era insatisfatório, concordaram, o quão pouco a gente conhece as pessoas. No entanto, disse, sentada no ônibus que seguia por Shaftesbury Avenue, ela tinha a impressão de estar por toda parte; não "aqui, aqui, aqui"; e tamborilou no encosto do banco; mas por toda parte. Fez um aceno com a mão, enquanto subiam por Shaftesbury Avenue. Ela era tudo aquilo. E, portanto, para conhecê-la, ou qualquer outra pessoa, seria preciso ir atrás daqueles outros que a completavam; e até mesmo dos lugares. Ela sentia uma estranha afinidade com pessoas às quais jamais dirigira a palavra, uma mulher na rua, um sujeito atrás do balcão - e mesmo com árvores ou celeiro. Tudo aquilo desenbocava em uma teoria transcendental que, dado o horror dela pela morte, lhe permitia acreditar, ou afirmar que acreditava (a despeito de todo seu ceticismo), que, uma vez que nossas aparições, aquela parte de nós que se manifesta, são tão prontamente comparadas com outra parte nossa, com nossa parte invisível, que se estende de modo amplo, era bem possível que o invisível sobrevivesse, pudesse ser de algum modo recuperado no apego por esta ou aquela pessoa, ou mesmo assombrando certos lugares, após a morte. Talvez, talvez. (Pág. 182)
Fazer a mesma coisa milhões de vezes a tornava mais rica, embora também fosse possível dizer que lhe empanava o brilho. (Pág. 193)
Absorvente, misteriosa, de uma abundância infinita, esta vida. E na imensa praça, onde os táxis passavam e se desviavam tão apressados, casais passeavam, namorando, abraçando-se, estreitando-se sob a sombra de uma árvore; tudo isso era tocante, tão silenciosos, tão absortos, que a gente passava por eles discretamente, timidamente, como se estivesse diante de uma cerimônia sagrada cuja interrupção teria sido um sacrilégio. Isso era interessante. E assim por diante rumo ao brilho e ao esplendor. (Pág. 194)
A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de comunicar; as pessoas sentindo a impossibilidade de alcançar o centro que, misticamente, se esquivava; a proximidade apartava; o arrebatamento se esvaía; a gente ficava só. Havia um abraço na morte. (Pág. 217)
Mas esse jovem que se matara - havia ele mergulhado agarrado a seu tesouro? "Morrer agora seria a suprema felicidade ", certa vez dissera a si mesma, descendo a escada, vestida de branco. (Pág. 217)
Depois (só nessa manhã ela se dera conta) havia o terror; essa incapacidade assoberbante, colocada em nossas mãos pelos pais, essa existência, para ser vivida até o fim, para ser acompanhada serenamente; no fundo de seu coração jazia um pavor medonho. Mesmo agora, quantas vezes não teria perecido, se Richard não estivesse ali lendo o Times, permitindo a ela se encolher como um pássaro e pouco a pouco recobrar o calor, fazer com que essa alegria imensa se inflamasse, raspando um toco de madeira no outro, uma coisa na outra. Ele conseguira escapar. Mas aquele rapaz se matara. (Pág. 217)