spoiler visualizarDanielle 09/02/2016
Outros homens que não amavam as mulheres
Não, não vamos falar de rostos em fotografias ou crimes esquecidos em cidades congeladas na Suécia.
Porém, sim, falaremos de assassinato. De mulheres sendo perseguidas, torturadas e tendo seus úteros arrancados cirurgicamente por alguém que tem uma mente doentia o suficiente para planejar e executar estes atos. Falaremos também de feridas físicas, emocionais e psicológicas, que podem se arrastar conosco pelo resto de nossas vidas. Vamos discutir também a posição da mulher num ramo de trabalho tão masculino quanto as investigações policiais podem ser.
Vamos falar de tudo isso com muitos spoilers.
Em O Cirurgião, de Tess Gerristen, somos apresentados a esse cenário desesperador. Há mulheres sendo caçadas por um aparente serial killer, e uma cirurgiã renomada e experiente, Catherine Cordell foi vítima dele. Ele a estuprou e destruiu sua integridade, de modo que a médica seguiu seus dias sempre acuada, com medo do menor ruído, pondo trancas extras nas fechaduras de sua casa e temendo qualquer pessoa que se aproximasse demais - inclusive homens.
Aqui, temos o retrato perfeito da vítima de crimes sexuais: seguem assustadas e eternamente marcadas pelo seu passado, temendo qualquer coisa que possa remeter a ele e/ou qualquer possível situação de risco. Ainda, há a dificuldade extrema que Chaterine possui para falar sobre o assunto - de modo que, em determinado momento da história, a polícia contrata alguém para hipnotizá-la e tentar trazer de volta algumas memórias dolorosas, porém importantes. Em um dos momentos mais sensíveis dela, em que é necessário que diga o que ocorreu numa noite tão traumatizante, ela mal consegue falar. Quer chorar, mas engole. Quer fugir daquilo, mas se contém. A temos como um gato assustado que, posteriormente, vai se revelar como um tigre que apenas aguardava a oportunidade para mostrar que existe.
Ainda, há a abordagem de uma das consequências mais terríveis de um estupro: a vítima, por inúmeras questões culturais e sociais, sempre se considera culpada, mesmo não o sendo:
"As mulheres são assim - Olhou diretamente para Moore. - Culpamos a nós mesmas por tudo, mesmo quando o homem nos fode sem o nosso consentimento."
É possível perceber que o livro trata de investigações policiais, também. Geralmente, os ambientes policiais na literatura são habitados por homens de posições fortes, um passado traumático aqui e ali e perseguições de carro para chegar até o culpado. Bom, O Cirurgião também tem tudo isso, mas com um acréscimo: uma mulher na equipe. À primeira vista, isso não é nada demais; afinal, essa área não possui restrição de sexo.
Pelo menos, não abertamente.
A detetive Jane Rizzolli é tão competente quanto seus colegas, mas carrega ressentimentos de desentendimentos anteriores. Ela sabe que não possui atrativos físicos e suas opiniões não são tão levadas a sério quanto as daqueles que trabalham junto dela e, ainda, seus sentimentos entram em conflito quando um policial da equipe passa a se interessar por Catherine, o cisne ferido da história. Seu motivo para se tornar policial é maravilhoso e imponente, principalmente ao se considerar o meio onde ela está inserida. Em diversos momentos, podemos ver a narração apresentando sua mágoa e percepção de ser menosprezada por ser a única mulher num meio permeado por homens:
"Vocês homens podem concentrar toda sua atenção no caso e nas provas. Mas eu gasto muito tempo e energias tentando fazer com que me ouçam."
"- Ela pode até ter razão - disse Marqutte.
Eu sei que tenho, pensou Rizzolli, coração carregado de ressentimento."
No fim, numa maravilhosa cena de epifania da detetive, Rizzolli rouba a cena no momento mais crítico de Cordell, e ruma a uma fazenda distante para salvar a cirurgiã. Ela é atacada pelo assassino, mas Catherine dá o golpe final com um quê de deus ex-machina. Clichê? Talvez, mas era disso que eu falava quando mencionei o gato e o tigre. Ela se impõe e se recusa a morrer assustada, como tem vivido seus últimos dias. Se morrer, vai ser lutando pela sua vida. E assim o faz, até o último segundo, num tiro disparado que acerta a vitória.
Além disso, gostaria também de apontar os inúmeros detalhes dos procedimentos médicos que aparecem ao longo da história. Como estamos lidando com a medicina, é natural que essas cenas apareçam. Porém, quando se considera que a autora já foi médica e abandonou a carreira para se dedicar à literatura, é possível compreender porque há tanta naturalidade nas descrições de ações de emergência, manuseio de medicamentos, instrumentos de trabalho, entre outros. Mais um ponto para o livro.
Sobre nosso maníaco, este com certeza é um dos mais problemáticos e doentes que já vi na literatura. Na verdade, colocaria ele um pouco atrás do criminoso de Os Homens que Não Amavam as Mulheres. Trata-se de um ex-estudante de medicina que, após ser pego pelo professor cometendo um ato obsceno e puramente doente, é expulso da faculdade, e se une ao seu parceiro dos estudos para cometer esses crimes. É impressionante como ele trata Andrew: há sempre um tom de inferioridade em relação ao outro assassino, de admiração, de como ele era fraco e pequeno perto do outro homem. Tudo o que fazia, fazia para impressionar Andrew. Quando Cordell dá um tiro quase fatal em seu parceiro, Warren Hoyt passa a caçá-la para colocá-la em seu devido lugar.
A narrativa é ágil o tempo inteiro, desacelerando apenas em algumas cenas mais explicativas que são tão importantes quanto as outras. Há diversos termos médicos recheando o texto, mas nada que impeça a compreensão do contexto ou que não seja explicado posteriormente. Algo que pode talvez causar confusão no leitor mais desatento é os nomes não sendo sempre associado às funções dos personagens, mas também não é nada que comprometa o enredo.
O livro tem mais de 300 páginas, as quais li em apenas 1 dia. É.
Ainda preciso dizer que é recomendadíssimo?
site: vidaslivradas.wordpress.com