Albarus Andreos 09/11/2012Os Senhores da MorteTemujin não existe mais. Em seu lugar agora reina o grande cã das planícies, Senhor de todas as tribos, unificadas pelo bom senso ou pela coação dos mortíferos arcos compostos mongóis. Gêngis Khan, é como o chamam agora, o gurcã do mar de capim (dá para se ver de onde George R. R. Martin tirou inspiração para compor seu Karl Drogo e seus cavaleiros dothraki, na aclamada série "As Crônicas de Gelo e Fogo").
É aqui que o segundo volume da magnífica série O Conquistador, de Conn Iggulden, se inicia. Os Senhores do Arco (Editora Record, 2009) é a sequência de O Lobo das Planícies (Ed. Record, 2008), que nos apresentou o jovem Temujin e sua família, contando a infância e as desgraças do menino que seria forjado em aço, sangue e ódio para reunir as tribos mongóis em frangalhos diante dos tártaros e do invencível império Jin.
Gêngis está no auge de seu poder. Já lutou e venceu muitas guerras. Toda a oposição foi varrida. Ele então convoca as tribos que ainda restam sob o ultimato de "submeta-se ou morra também" e todos os que tem juízo atendem seu apelo. Com um exército gigantesco os mongóis agora cavalgam para o sudeste, onde os xixia, primeiro, e depois o jin, os aguardam atrás das grandes muralhas. Acompanhamos nesse meio-tempo as aventuras e desventuras de seus irmãos, Kashiun, Khasar e Temuge, bem como o florescimento de seus filhos, principalmente Jochi, oprimido pela sua história e a dúvida que paira sobre seu nascimento (seria ele filho de Gêngis, ou então fruto dos estupros a que Borte, sua mãe, fora submetida ao ser capturada pelos tártaros, anos antes).
A narrativa é repleta de força e energia como foi em O Lobo das Planícies, embora me parece que neste segundo livro temos um ligeira queda na qualidade narrativa. Nada crucial, contudo. Com a determinação de Gêngis falando mais alto o tempo todo, nos deparamos com os universos dos outros personagens que o circundam. Ótimas descrições, personagens muito bem construídos, discurso sempre afinado com o momento histórico retratado.
Fiquei surpreso em algumas passagens, como por exemplo quando se descreve como Jochi não se parece com Gêngis, o que poderia sugerir que ele seria filho ilegítimo. O garoto é descrito com olhos escuros, diferentemente dos irmãos, com olhos amarelos claros, como os de seu pai; amarelos como os dos lobos (?). Noutra passagem, Kashiun chama alguns marinheiros jin (chineses) de "amarelos", numa outra referência a que os mongóis não fossem asiáticos de olhos puxados como eu imaginava. Isso me parece um contra-senso pois é só dar uma olhada na internet para ver que os mongóis são sempre mostrados, a grosso modo, como chineses. Eu, pelo menos, não consigo diferenciar só olhando a cara. Fica a dúvida...
Em outras duas passagens novamente fiquei de orelhas em pé. Na página 22, há um rica descrição de como seria a iurta (tenda) de Gêngis Khan. Ela é descrita como sendo maior, mais rica e claramente diferenciada das outras iurtas destinadas ao restante do povo. Contudo na página 112, diz-se que a iurta do grande Khan era igual a todas as outras, não diferindo de qualquer uma das demais. Parece-me que faltou um pouco de coerência ao nosso Conn Iggulden, aqui.
Diferentemente de muitos outros livros, Os Senhores do Arco nos mostra o lado daqueles por quem não torcemos. Eu pelo menos não torço por Gêngis Khan. Isso dá uma perspectiva diferente e crítica aos nossos olhos. Há muito o que justificar o personagem principal como fruto de seu meio, fruto do ódio e da fome. Gêngis foi engendrado para realizar o que realizou e só a sorte pode justificar até onde chegou. As hordas do grande líder mongol eram desorganizadas, formadas por tribos que nutriam rixas pessoas umas com as outras e mesmo assim puseram aos seus pés povos com superioridade tática e numérica avassaladoras. Este livro é um tributo então à persistência, à força, à temperança e a impetuosidade.
O povo mongol foi oprimido por mil anos pelos jin, um império terrível que comprava, subornava ou simplesmente massacrava os que se opunham a sua supremacia no sudeste asiático. Por isso os mongóis queriam simplesmente extirpar qualquer traço dos inimigos de sobre a terra. Mas os jin tinham uma cultura riquíssima, conheciam a escrita, construíam cidades, criavam leis e veneravam a inteligência e a perícia de seus sábios. Mudavam a paisagem com a irrigação e o saneamento básico, plantavam e alimentavam seu povo com seu trabalho. Já os povos das tribos, como os mongóis chamam-se a si próprios, viviam em tendas, eram itinerantes, não tinham escrita ou agricultura, criavam suas crianças com o único intuito de prepará-las para a guerra e decidiam tudo com o derramamento de sangue.
É fácil então entender porque os xixia ou os jin chamam-nos de bárbaros, sem qualquer contexto relativo às culturas diferentes das praticadas na Grécia ou em Roma, berços da civilização ocidental. Bárbaro é sinônimo de selvagem aqui. É nesta conjuntura que compartilhamos a visão que Chen Yi, um contrabandista e chefe de um bando de ladrões, em Baotou, uma das cidades no caminho do gurcã mongol. Numa conversa entre ele e Gêngis notamos sua decepção com o que há de vir. Embora odeie os jin, as perspectivas de ter os mongóis governando sua cidade é aterradora. Vemos que, se os jin caírem, cairá aquilo que faz um ser-humano algo melhor que um animal. Por mais corruptos que possam ser, por mais que as leis sejam só para os despossuídos e não atinjam os nobres, por mais que vejamos como os mongóis são o espelho dos jin, ainda assim preferimos a civilização à barbarie, que massacra festivamente homens, mulheres, crianças, velhos e qualquer traço de sua cultura. A isso chamamos "limpeza étnica". Mas foram centenas de anos de opressão do império Jin e nos perguntamos até onde um povo oprimido, maltratado e desprezado pode suportar. Vemos o asco que os jin nutriam pelos mongóis, o nojo que tinham só de olhá-los. Gêngis resolveu dar um basta. A vingança, mais que qualquer outra coisa, movia o povo mongol.
Há uma semelhança muito grande entre Conn Iggulden e outro grande escritor de ficção histórica, Bernard Cronwell (impossível não compará-los, tal a magnitude de ambos, sua beleza escrita e erudição, além da semelhança de temas), mas também uma diferença muito importante: Enquanto Cornwell se debruça sobre cada batalha, esmiuçando cada movimento de personagens e tropas, Iggulden segue avassalador sobre as passagens menos importantes e então concentra-se sobre a batalha final, despejando dezenas e dezenas de páginas em cima o evento.
Em nenhuma linha das narrativas de Cornwell (só para citar algumas de suas obras: as Crônicas Saxônicas, como exemplos) dá para ver tanta alegria nos vikings com a matança desenfreada, como se vê nos mongóis de Iggulden. Os vikings são descritos como raivosos e sanguinários, rufiões e beberrões; parecem matar os inimigos imbuídos de ferocidade e certa honra, já que matar um oponente que empunhe uma espada é dar honra ao seu nome no outro mundo. Vão para as guerras como vão para uma festa: bêbados, felizes e excitados. Um oponente é visto com dignidade e embora não se distingua um cadáver de outro, depois de meneada a lâmina e derramado o sangue, os vikings apenas amam matar, pois isto os faz fortes aos olhos dos deuses. Já os mongóis, odeiam os inimigos e os desprezam com todas as suas forças. Não bebem antes de ir para a guerra para poderem matar melhor e o mais dolosamente possível. Para os mongóis, os inimigos são piores que cães. A grosso modo, os vikings de Cornwell são freiras carmelitas, comparados com os mongóis de Iggulden.
O autor demonstra isso com extrema maestria na passagem do Desfiladeiro da Boca do Texugo. É emblemática a brutalidade dos mongóis, após Gêngis conquistar e fazer tantos prisioneiros que eles passam a ser em número quase maior até que seus próprios guerreiros. Os cativos são deixados para morrer de fome, ou são usados para o treinamento de combate sendo massacrados apenas para que os guerreiros menos experientes aprenderem a guerrear, ou são colocados na frente de batalha, como escudos, para receberem a maioria dos disparos de bestas e assim cansarem e pressionarem as linhas inimigas. Oponentes são apenas carne a ser morta, para os mongóis. É arrepiante pensar que um dia existiram e um alívio saber que perderam, no final. Mas isso certamente veremos nos próximos livros da série O Conquistador.