Lucas 14/02/2023
Sai a vergonha, entram os coturnos: o despudorado processo de sepultamento da democracia brasileira
Dentro da coleção de livros da ditadura do jornalista Elio Gaspari (1944-), o segundo volume dela (A Ditadura Escancarada, de 2002) trata do auge do regime ditatorial (1964-1985). É quando o "movimento revolucionário" rasga o seu caráter de transitoriedade para uma renovada democracia e veste-se com a capa da ditadura, que cobre o Brasil com imposições, arbitrariedades, corrupção e perseguições políticas.
O famigerado AI-5, baixado no final de 1968, é a "tesoura", que faz esse rasgo profundo no Estado brasileiro e a qual corresponde ao último grande acontecimento d'A Ditadura Envergonhada, livro que abriu a série de Gaspari. Após uma intensa queda de braço entre militares moderados e a chamada linha dura, do grupo encabeçado pelo general e então presidente Artur da Costa e Silva (1899-1969), os últimos prevalecem. A doença do chefe da nação inicia novas efervescências e uma junta militar assume temporariamente o poder até que o general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) é conduzido à presidência em 30 de outubro de 1969. É sob o seu governo que o Brasil mergulha fundo na ditadura militar: os "anos de chumbo" andaram em paralelo ao "milagre econômico". Por determinado período, o Brasil apresentou crescimento econômico notável (entre 1969 e 1973 o PIB brasileiro cresceu, em média 11,41% ao ano), enquanto o pau comia solto nos porões de unidades de segurança montadas pelo governo no combate a opositores.
A Ditadura Escancarada é estruturado sobre essa dicotomia, com os "anos de chumbo" prevalecendo (algo que o autor deixa claro na Introdução). Nesse sentido, logo de cara o leitor é surpreendido com uma análise incrível da tortura como instrumento de coação, e seus vários paradoxos: individuais, políticos e/ou psicológicos, a prática da tortura era um processo sistematicamente devastador em cada um destes segmentos. A institucionalização da tortura como uma política de Estado, provocada pelo AI-5 e regulamentos posteriores, era, entretanto, um instrumento que funcionava para os militares. Na maioria dos casos, a truculência e a coação empregadas faziam com que o preso delatasse e todo o seu núcleo era "investigado". Em nome da famigerada garantia da lei, da ordem e dos costumes, matava-se gente (normalmente jovens estudantes).
O processo de abrutamento das perseguições governamentais, contudo, passou muito do ponto, como a história comprova. Obviamente que qualquer prática contrária a quem pensa diferente é universalmente condenável, mas Elio Gaspari deixa claro que esta marcha de recrudescimento do regime, iniciada em meados de 1969 e a qual durou até 1974 com a Guerrilha do Araguaia, foi contaminada por uma forte "policialização" do Exército. Os níveis superiores de todo este aparato de opressão (estruturados através dos temidos DOI's – Destacamentos de Operações de Informações, órgãos de buscas, apreensões e "interrogatórios") eram formados por membros das Forças Armadas. Mas as extremidades operacionais eram compostas por policiais civis ou militares, as quais, já inseridos dentro de uma sistemática de atuação prévia, operavam redes de corrupção abrangentes, que iam desde proteções "particulares" até esquemas de contravenção. Alimentado por interesses próprios, estes elementos cometiam brutais excessos, o que não desabona de forma alguma os comandantes destas "facções" que se tornaram os destacamentos (prova disso era a defesa sistemática e inacreditável oferecida ao delegado Sergio Fleury (1933-1979), comandante do Esquadrão da Morte de São Paulo). O nível de banditismo é tão alto que algumas passagens da obra são quase um roteiro adaptado do filme Tropa de Elite (especialmente do primeiro, de 2007).
Estes absurdos também tinham uma capa protetora muito resistente vinda de Brasília. O Governo Federal alegava terminantemente que não sabia de torturas no país e que era preciso combater com vigor o terrorismo da esquerda, marcado por ações urbanas e sequestros (especialmente de embaixadores estrangeiros). Segundo o governo, este clima de desordem era incentivado por organismos internacionais, as quais não queriam ver o desenvolvimento do país que vivia o milagre econômico. Ou seja, o discurso era relativamente similar ao predominante no Brasil até pouco tempo atrás: a pátria nacional precisa ser protegida de aspectos que lhe deterioram; a economia do Brasil está/estava ameaçando potências estrangeiras, as quais patrocinavam ações de desordem por aqui e assim por diante. Mas o que as investigações de Gaspari demonstram é que Brasília sabia destes excessos e recompensava-os nos bastidores, por meio de promoções hierárquicas, ganhos e favores pessoais com obscuras conexões e muito investimento monetário nos órgãos de segurança.
Toda esta "baderna" não existia apenas no lado dos torturadores. O autor também faz contundentes revelações sobre o funcionamento, especialmente em seus momentos derradeiros, dos agrupamentos da luta armada, como a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o MR8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro). É utópico pensar que estes grupos, caso assumissem o poder, iriam impor uma democracia totalmente livre e multioperante. Também não havia pudor algum em riscar do mapa quadros que não estavam mais totalmente sincronizados com os ideais defendidos. Do mesmo modo, as ações terroristas nem sempre deixavam de respingar em inocentes... Ou seja, trocando em miúdos, a semente do radicalismo era forte em ambos os lados e nenhum excesso de nenhum escopo pode ser defendido, justificado ou esquecido.
Apesar destes incontáveis desmandos, execuções e outras barbaridades, o início dos anos 70 viveu o ápice do poder ditatorial. A explicação para isso pode vir de cima: com a chegada ao poder de Emílio Médici, a governabilidade militar, frágil com as saídas de Castello Branco e Costa e Silva, solidificou-se. Médici foi o primeiro presidente da ditadura a cumprir seu mandato e depois passou o lugar para Ernesto Geisel (1907-1996) em 1974. Discreto e ensaboado, Médici é visto por muitas “"viúvas" da ditadura como o melhor presidente daqueles anos sombrios. Gaspari ilustra isso através de descrições pontuais, as quais dão a entender que o presidente dominava como poucos a arte da contradição. Ao estar ciente de que cidadãos brasileiros eram sumariamente torturados e/ou assassinados, ele não condenava fortemente tais atos, mas nunca os incentivou (ao menos oficial e desmesuradamente). Se não desejava a presidência, utilizou a máquina estatal para tornar concreto o poder ditatorial, o que acabou sendo determinante para os anos que vieram; se não cassou nenhum político, fortaleceu a mordaça da imprensa; se inaugurou importantes obras estruturais no Brasil, fechou os olhos para uma corrupção endêmica, que contaminou quartéis e governo.
As páginas d'A Ditadura Escancarada trazem muito espaço ao papel da Igreja Católica em meio a tudo isso. Dado o seu caráter universal e impossível de controlar pelos órgãos estatais, a Igreja sempre foi uma espectadora importante das intransigências do período. Quando apoiou o golpe de 1964 a qual acabou instalando o regime ditatorial, a Igreja foi uma das muitas entidades, indivíduos comuns e políticos traídos pelo discurso de combate à ameaça comunista propagado pelos militares. Ao endurecer a caça aos opositores, os perseguidos acabaram infiltrando-se dentro do caráter intocável da Igreja como proteção. Paulatinamente, o sangue derramado e as feridas provocadas pela ditadura foram percebidas e denunciadas por importantes autoridades eclesiásticas, como dom Hélder Câmara (1909-1999) e dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), então bispos da Igreja Católica. O trabalho dessas duas figuras (especialmente de d. Hélder) ocupa muito espaço dentro do livro, em especial no que tange a questões políticas, perseguições e divergências internas da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Cronologicamente, este segundo volume termina com a Guerrilha do Araguaia, mais conhecido foco de resistência armada que existiu entre 1967 e 1974 entre os atuais estados de Tocantins e Pará. Situado nos limites da floresta Amazônica, o local abrigou cerca de uma centena de "revolucionários", liderados por Mauricio Grabois (1912-1973) e João Amazonas (1912-2002), ambos do PC do B. Por lá, habitavam quadros comunistas, as quais envolviam-se com atividades sociais (como escolas aos moradores do lugar) em paralelo a atividades terroristas, como aulas de tiro. Acobertadas pelo governo e ancoradas pela censura da mídia, o regime militar enviou à área diversas expedições entre 1972 e 1973 para extermínio da guerrilha. Os eventos só foram conhecidos e divulgados após a redemocratização; ainda hoje tramitam na justiça ações que questionam o Estado brasileiro acerca da localização de restos mortais dos revoltosos (os últimos corpos foram incinerados por tropas do Exército). Com exceção deste aspecto histórico, de mistério e até mesmo de mito em torno dos acontecimentos do Araguaia, a guerrilha sintetizou bem aquele período: uma esquerda armada que superestimava seu alcance e poderio bélico, sonhando com uma grande insurreição rural, combatendo contra uma autoridade estatal que superestimava as forças concorrentes e, alimentada pelo medo deste tipo de levante, massacrou seus inimigos. Apesar das brutalidades também ocorridas contra os militares, o desfecho não poderia ser outro senão o esmagamento do foco.
Seja nas estruturas militares, órgãos de segurança, táticas de extermínio de opositores, consolidação do poder ditatorial, nas várias biografias de personagens importantes do período, num radicalismo multifacetado, no papel da Igreja Católica no regime militar daqueles tempos, na Guerrilha do Araguaia ou em inúmeros outros pontos aos quais o leitor entrará em contato durante a leitura, A Ditadura Escancarada é uma plural aula de história, um imenso documento cujas linhas ecoam até e principalmente os dias de hoje. Nelas, Elio Gaspari renova significados, relembra compreensões que precisam ser revisitadas atualmente, onde discursos radicais e censura estão tão banalizados. Ler esta obra é estar em contato com um Brasil de apenas cinco décadas atrás; um país onde não se podia ler, escrever ou falar de muitas coisas... mas era e é um Brasil defendido por muitos que hoje clamam por liberdade. A obra, portanto, é, além dos predicados já citados, uma arma poderosa diante destas tantas hipocrisias que parecem atravessar gerações, não possuem apenas um viés e compõem parte importante do pano de fundo do Brasil atual.