Ticiane 30/12/2022
Já dizia calcinha preta: duas paixões, dois amores
Pretendo ler Rebecca da Daphne Du Maurier e como sei que a temática da obra se relaciona com A Sucessora da Carolina Nabuco e com Encarnação de José de Alencar, resolvi ler o livro mais antigo primeiro.
Comecei a leitura com a intenção de analisar possíveis semelhanças com as obras que citei aqui - que ainda lerei. Fiquei com um pé atrás ao ler algumas resenhas aqui que falaram um pouco do realismo presente na obra e pensei que não iria gostar, mas fui surpreendida e gostei bastante. Para mim o mais interessante na história foi o fator psicológico, que inclusive é muito lembrado quando se fala de Rebecca e imagino que de A Sucessora também, mas que não vi sendo falado neste. Esse livro merece tanta visibilidade quando os outros, a história é muito bem construída.
Gosto do estilo que o autor adota em seus romances urbanos, para mim ele equilibra bem a ambientação, os personagens, momentos de romance e descontração. Li Cinco Minutos/A Viuvinha e me apaixonei pelos contos. Diria até que parece um autor totalmente diferente das suas obras indianistas. De todos os livros que li do autor esse foi o único que me remeteu a Machado de Assis. Pensei isso durante a leitura porque notei algumas - possíveis - referências a outras obras e também dicas que o narrador dá de forma bem sutil sobre coisas que acontecerão.
Começo pelo nome da falecida: Julieta. Após a sua morte, Hermano vive um constante luto: é um Romeu que não morreu, mas gostaria de ter morrido com a amada. Só se relaciona socialmente e só frequenta os lugares que eram conhecidos por ambos. Adiante Amália também passa a ser como a Julieta - de Shakespeare - ela desfalece de amores por ele e ele pensa em morrer por ela.
"É verdade, há ocasiões em que sinto Julieta perto de mim, e em que vivo com ela como outrora. E a sua alma que me acompanha ou é a minha lembrança que a tem sempre viva e presente ao meu espírito? Seja o que for, isso me consola e me restitui a felicidade que perdi. Que necessidade tenho eu de investigar este mistério ou dissipar esta ilusão?"
Antes de conhecê-lo Amália sentia curiosidade e achava maluquice o comportamento e devoção de Herculano. Nunca quis saber de casamento, mas após vê-lo no jardim e recordar-se de uma cena que vira entre o casal na infância seu pensamento muda completamente e ela passa a vê-lo com outros olhos. "Essa mulher que havia merecido um amor tão puro completamente desprendido dos interesses e misérias sociais; que expressão, que encanto especial, que magia celeste possuía a sua beleza?" Passou a comparar-se com a falecida, no fundo desejando ser alvo de tal devoção.
Quando Hermano vê Julieta pela primeira vez ela está cantando Lúcia de Donizetti. Ele pensa consigo mesmo que sempre imaginou a cantora sendo loira, mas Julieta era morena. Em contrapartida, quando ele vê Amália pela primeira vez ela está cantando a mesma música, mas dessa vez a mulher em questão é de fato loira. Mais a frente o autor usa a música como expressão de sentimento. Quando eles se desentendem Amália canta uma Addio del Passato - tem no YouTube -, uma ópera triste.
"Ela acreditava que o marido de Julieta ainda amava a primeira mulher e vivia de sua lembrança, mas esse afeto de além túmulo não podia encher-lhe a existência; e por isso aquela alma rica de paixão e mocidade se desprendia da sua idolatria para buscar no mundo uma expansão, um sentimento de que se nutrisse."
Li em algum lugar por aqui que diz que nesse livro o autor flerta com o gótico e eu concordo. Não pude deixar de correlacionar o amor doentio de Catherine e Heathcliff em O Morro dos Ventos Uivantes a Hermano, Amália e Julieta.
"O gesto de Hermano por mais excêntrico e singular que fosse, aparecia-lhe através da morte cuja sombra o envolvia. Não era uma fineza banal de namorados, nem uma afetação vã. Havia naquele diálogo mudo a comunicação de duas almas cujo elo o túmulo não tinha partido."
Inicialmente presente apenas no primeiro casamento, uma vez que compartilhavam da ideia da união - transcendental, talvez? - de almas no casamento, que esse laço seria eterno. Mais avante esse sentimento contamina Amália também.
"O casamento é uma fatalidade. Como Hermano interrogava-lhe o semblante para conhecer o sentido de suas palavras, ela acrescentou: - Meu marido há de pertencer-me de corpo e alma, como eu a ele, e para sempre. É assim que entendo o casamento. - Penso da mesma maneira. - Para sempre é eternamente."
"Heathcliff, it's me. I'm Cathy, I've come home. I'm so cold, let me into your window." Por coincidência a primeira vez que Amália o vê de perto depois de apaixonada é através de uma janela.
Ela toma para si as dores de Julieta, considerando-se traída em seu lugar ao imaginar que Hermano poderia estar com outra. Quando enfim torna-se esposa passa a ter raiva da falecida por ainda ser tão presente na casa, sempre um terceiro membro à mesa. "Esse marido lhe pertencia agora; e ninguém lho podia roubar. Tinha-lhe jurado fidelidade; e só ela podia dar-lhe a ventura. Essas recordações que afligiam incessantemente o espírito de Hermano, eram uma vingança de Julieta. Essa mulher nunca tinha amado sinceramente o esposo; pois não sabia sacrificar-lhe o egoísmo de sua afeição." Como Catherine passa a amá-lo com um amor que lhe adoece, abrindo mão de si para tornar-se outra.
"O amor de Hermano era uma demência. Não fora uma mulher que ele havia adorado, e adorava ainda; mas um fantasma, um ente de sua imaginação. Esse ideal, ele tinha encarnado em Julieta, desde o primeiro momento em que a vira."
O final me surpreendeu pois achei que Hermano teria êxito em seu plano, gostei de como findou. Digo que é possível resumir toda a história em poucas palavras e a banda Calcinha preta fez isso muito bem: "Duas paixões, dois amores é loucura que somente um coração pode explicar. Me perdoe, é que sem ela eu não vivo e sem você não sei ficar. Tem jeito não, eu te amo mas a três não rola, não."