Felipe 23/10/2022"Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo!"O livro é uma verdadeira lança satírica que cutuca praticantes todos os segmentos sociais políticos e religiosos da época (1509 quando foi escrito), assim como diversas interações interpessoais.
A deusa Loucura se diz filha de Plutão, tendo como tutores na sua infância o amor-próprio, a adulação, a volúpia, etc, etc. A pobre coitada está profundamente chateada com os seres humanos por não prestarem as devidas honras ao seu nome, sendo que ela é a deusa que mais trabalha nas relações sociais! E assim, decide ela começar seu autoelogio.
Nessa primeira parte ela dirá que todo o corpo social só funciona por causa dela. Para provar sua tese, começa com os casamentos, dizendo que se influenciadas pela razão, as mulheres nunca iriam se submeter aos vis casamentos que lhes são impostos. Após isso, diz ainda que todo nascimento só é possível através dela. Novamente, se guiadas pela razão, mulher alguma após ter o primeiro filho cogitaria em ter outro, tendo em vista as imensas dores e mal estar que acompanham uma gestação.
Dessa forma ela continua, citando as relações de amizades, de poder entre senhor e servo, de como um marido pode suportar uma mulher, etc, etc. Que se colocadas à luz da razão seriam inadmissíveis.
No livro também é muito presente a dualidade entre felicidade/ilusão x tristeza/verdade. Que encontra ecos na Caverna de Platão. Para a loucura, os sábios e filósofos são o que existe de pior no mundo. Se submetem aos mais penosos labores intelectuais em busca de uma verdade permanente em um mundo que justamente nega toda imutabilidade. Por isso nunca são convidados aos banquestes, são por natureza melancólicos. Enquanto os propriamente ditos "loucos", que não se preocupam em refletir sobre aquilo que não é passível de reflexão e vivem apenas para o presente, são sempre a alegria das festas, sejam da realeza ou da plebe.
Aquela antiga e permanente questão: Será que o conhecimento e a reflexão são obstáculos para felicidade?
E se forem, valeriam apena mesmo assim? De acordo com a Loucura não, pois:
"Sem alegria, a vida humana nem sequer merece o nome de vida"
Para ela a felicidade consiste em:
"sobretudo, em se querer ser o que se é."
Por isso que de todos os animais, o ser humano é o mais infeliz. Diferente das moscas, pássaros e outros animais que estão satisfeitos com suas atribuições, o ser humano, trafegando na contramão: "Sabe mais do que o necessário, mas menos do que precisa."
Portando, os seguidores da loucura (nesse caso os patológicos, e não as caricaturas dos vícios, como jogadores, glutões, etc) seriam os seres mais felizes dessa terra. Somando-se à isso o aspecto teológico, a verdade absoluta, está obviamente, apenas em Deus. Em vida o máximo que se pode fazer para se aproximar dessa verdade, e consequentemente, da felicidade eterna, seria seguir os preceitos de Jesus Cristo, como fazem alguns santos, ou, como visto anteriormente, sendo um desses desatinados naturais.
(Essa última ideia dos doentes psíquicos serem as pessoas "tocadas pelo espírito santo" na Renascença está em total consonância com o que Foucault fala sobre este período e sua percepção do desatinados em seu livro "História da Loucura"!!!)
Enfim, a parte dessas divagações filosóficas, a loucura continua criticando variadas atitudes da realeza e do clero. Atentando-se, principalmente, nesta última, com foco nas indulgências, atitudes desprezíveis de homens que ocupam altos cargos em Roma, suas interpretações e teologias em total dissonância com os preceitos mais simples ensinados por Jesus ou como usam a Bíblia como justificativa para dar cabo de guerras sangrentas e perseguições gratuitas.
Claro que tudo isso é feito destilando ironia e usando a máxima que "contra piadas não há argumentos".
Só que lendo essas últimas partes sobre a religião, senti que o tom de piada foi desvanecendo, como se Erasmo quisesse assumir uma postura mais sóbria para o ataque não passar despercebido, ou da possibilidade de ser visto apenas como uma chacota infantil.
"Com efeito, o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, *quanto ao rebanho, que dele cuide Jesus Cristo.*"
Por fim, a Loucura usa diversas passagens da Bíblia para sustentar sua visão que Jesus Cristo e e toda teologia cristã se fundamenta na loucura, sendo este tipo de loucura positiva e contrária à corrupção religiosa vista em seus dias.
O livro é engraçadíssimo em certas partes, sempre com aquele humor ácido delicioso. Possue muitas reflexões críticas sobre costumes, pensamentos sobre teologia (afinal, Erasmo era um teólogo) e referências à vários autores e histórias antigas. Vale super tirar um tempinho para lê-lo!
"Quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adota com maior avidez. Perguntar-me-eis por que? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos!"