spoiler visualizarMarcio 18/11/2012
Trechos prediletos: “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”
Em 08/11/2012
Título original: “Zen in der Knust des Bogenschienschiessens”
Autor: Eugen Herrigel
Ano: 1975
Edição brasileira:
Coleção Clássicos Zen
Por Monja Coen
Título: “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”
Tradução para o português, prefácio e notas: J. C. Ismael
Editora: Pensamento / 31ª. Edição
Trazendo o fantástico para o nível real, neste livro surpreendente, o filósofo alemão Eugen Herigel conta a sua extraordinária experiência como discípulo de um mestre zen, com quem aprendeu a arte de atirar com arco, durante os anos em que viveu no Japão como professor da universidade de Tohoku.” Prof. D. T. Susuki.
“Um arqueiro pode atingir o alvo a uma centena de passos, mas quando duas flechas se encontram em pleno ar, ponta com ponta, será somente a técnica a responsável?” Mestre Zen Tozan Ryokai, China, 807 - 869.
Mas por que o mestre não encarrega um discípulo experiente desses trabalhos preparatórios, inevitáveis, porém secundários? Será que diluir a tinta ou desatar tão cuidadosamente a fita em vez de corta-la contribui para estimular a sua intuição e criatividade? O que o faz repetir em cada aula essas operações com a mesma e inexorável insistência, sem nenhuma omissão, exigindo que os seus discípulos o imitem? Ele insiste em manter esse ritual tradicional porque sabe que os preparativos tem a virtude de sintoniza-lo com a sua criação artística. À serena tranquilidade com que os executa deve o relaxamento decisivo, o equilíbrio de todas as suas energias e a concentração, sem os quais nenhuma obra autêntica se realiza. Absorto na sua ação, livre de intenção, é conduzido até o momento em que a obra, atingidas suas formas ideais, completa-se quase que por si mesma. O que são no tiro com arco os passos e os gestos, o são nesses casos os preparativos: a forma é diferente, mas a significação é a mesma. Quando tal procedimento não é possível, como no caso do dançarino religioso ou no do ator, a concentração ocorre antes que apareçam em cena.
Eu me convencera que estava no caminho certo, porque quase todos os tiros, pelo menos assim parecia, saíam de maneira suave e imprevista. Porém eu não atentava para o reverso da medalha: para obter êxito, eu dirigia toda a minha atenção para a mão direita. Consolava-me a perspectiva de que essa solução técnica chegaria a ser, pouco a pouco, tão familiar que dispensaria toda atenção. Algum dia, graças a ela, me seria possível soltar o tiro inconscientemente, permanecendo esquecido de mim mesmo, na maior tensão. Assim também nesse caso, a técnica se espiritualizaria. Cada vez mais confiante nessa descoberta, não dei ouvidos às objeções da minha mulher e senti, por fim, a tranquila sensação de ter dado um decisivo passo a frente.
Ao se iniciarem as aulas, o primeiro tiro já me pareceu excelente. Desprendeu-se suave e sem esforço. O mestre me olhou por um momento e, hesitante, como quem não crê no que está vendo, ordenou: “Mais uma vez, por favor!” O segundo tiro me pareceu superar o primeiro. Então, sem dizer uma única palavra, o mestre se aproximou, tomou o arco das minhas mãos e, dando-me as costas, sentou-se numa almofada. Compreendi o que isso significava e retirei-me.
“O caminho até a meta é incomensurável. Para ele nada significam semanas, meses, anos.”
“Mas eu tive que interromper meu aprendizado na metade do caminho?”
“Pode fazê-lo a qualquer momento, desde que se tenha desprendido realmente do seu eu. Por isso, continue praticando!”
“Como o disparo pode ocorrer, se não for eu que o fizer acontecer?”
“Algo dispara”, respondeu-me.
“Já ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: como posso esperar pelo disparo, esquecido de mim mesmo, se eu não posso estar presente?”
“Algo permanece na tensão máxima.”
“E o que é esse algo?”
“Quando o senhor souber a resposta, não precisará mais de mim. E se eu lhe der alguma pista, poupando-o da experiência pessoal, serei o pior dos mestres, merecendo ser dispensado. Por isso, não falemos mais! Pratiquemos!”
E quando um dia perguntei ao mestre como poderíamos prosseguir com os nossos exercícios sem a sua presença, pois logo regressaríamos ao nosso país, ele respondeu: “Sua pergunta já foi respondida quando lhes pedi que se submetessem a um exame. Vocês chegaram a um nível onde mestre e discípulo não são dois, mas um. A qualquer momento podem separar-se de mim.. Ainda que estejamos separados por vastos oceanos, sempre estarei presente quando se exercitarem de maneira correta.”...
Como se pode espiritualizar a habilidade? Como se converter o domínio soberano da técnica na arte magistral da espada? A resposta é: o discípulo só progredirá se se desprender de toda a intenção e do seu próprio eu. Ele tem que atingir um estágio no qual se desprenda não só do adversário, mas de si mesmo. E tem que superar a etapa em que se encontra, deixando-a para trás, sob o risco de fracassar irreversivelmente. Isso não parece tão absurdo como a exigência, no tiro com arco, de se atingir o alvo sem fazer pontaria, ou seja, de se esquecer completamente da meta e da intenção de atingi-la?
De acordo com Takuan, a perfeição da arte da espada só é alcançada quando o coração do espadachim não for afetado por nenhum pensamento a respeito do “eu” e do “outro”, do adversário e da sua espada, da sua própria espada e da sua maneira de usa-la e nem se quer sobre a vida e a morte. Diz Takuan: “Assim, tudo é um vazio: você mesmo, a espada que é bandida e os braços que a manejam. Até a ideia de vazio desaparece. Desse vazio absoluto desabrocha, maravilhosamente, o ato puro.”
O que é válido para o tiro com arco e para a esgrima, também o é para as demais artes.