DANIZINHA 19/12/2017O escafandro e a borboletaMinha visão se turva e minhas ideias se embaralham. Assim mesmo sento ao volante da BMW, concentrando-me nos clarões alaranjados do painel. Manobro em marcha lenta e no feixe dos faróis mal distingo as curvas que já fiz milhares de vezes. Sinto o suor perolar-me a testa e quando cruzamos um carro vejo-o em dobro. No primeiro cruzamento encosto no meio-fio. Saio titubeante da BMW. Mal me seguro em pé. Desabo sobre o banco traseiro. Tenho uma ideia fixa: voltar à cidadezinha, onde também mora minha cunhada Diane, que é enfermeira. Semiconsciente, peço a Théophile que vá correndo buscá-la assim que chegarmos a frente da casa dela. Alguns segundos mais tarde, Diane está ali. Examina-me em menos de um minuto. Seu veredicto: “É preciso ir para a clínica. O mais depressa possível”.
Vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC), aos 43 anos, o jornalista e bon vivant Jean-Dominique Bauby esteve em coma profundo durante vinte dias do mês de dezembro de 1995. Ao acordar, o corpo estava paralisado da cabeça aos pés. O único movimento era o piscar da pálpebra esquerda, por meio da qual passou a se comunicar com os outros: uma piscadela significava “sim”, duas, “não”.
Assim, Jean-Do [como era conhecido] ditou todo o conteúdo do livro O escafandro e a borboleta (Editora Martins Fontes; 142 páginas) aos seus interlocutores. O código de comunicação, desenvolvido pela foniatra, baseava-se nas letras do alfabeto de uso mais frequente na Língua Francesa, as quais eram soletradas até que as palavras fossem transcritas uma a uma, formando as frases.
E S A R I N T U L O M D P C F B V H G J Q Z Y X K W.
Cada letra é classificada em função de sua freqüência na língua francesa. [...] O sistema é bem rudimentar. Meu interlocutor desfia diante de mim o alfabeto versão E S A... Até que, com uma piscada, eu o detenha na letra que é preciso anotar. Aí recomeçamos a mesma manobra para as letras seguintes e, não havendo erro, depressa conseguimos uma palavra inteira, depois segmentos de frases mais ou menos inteligíveis.
Nessas sessões de soletração, os médicos notaram que a memória, o raciocínio e os sentidos de Jean-Do estavam preservados - ao contrário das funções motoras -, o que caracteriza a locked-in syndrome, uma patologia rara, cujo portador vive dentro de um escafandro, na metáfora de Jean-Do. Quanto à borboleta, refere-se ao estado de espírito diante das situações pós-coma: do sarcasmo ao desencanto.
Dez dias depois do lançamento do seu livro de memórias, em 09 de março de 1997, Jean-Dominique Bauby morre vítima de pneumonia, deixando dois filhos - Théophile e Céleste -, além de uma comovente lição de vida: mesmo diante das adversidades, é possível apaixonar-se pela vida - ainda que seja “por dentro”. Basta que o espírito seja invencível.
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Além da leitura, que tal assistir também ao filme? O escafandro e a borboleta foi roteirizado para o cinema em 2007. Sob direção de Julian Schnabel, o ator Mathieu Amalric assume o papel de Jean-Dominique Bauby. Assista ao trailer, clicando aqui.
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http://leituradomomento.blogspot.com.br/2010/11/o-escafandro-e-borboleta.html