spoiler visualizarGabriel.Réquiem 29/06/2014
A trilogia Millennium, de Stieg Larsson, abriu as portas do mundo para a literatura escandinava. Hoje, os suecos lideram a ficção policial e seria questão de tempo até que autores de outros gêneros aportassem deste lado do Atlântico.
Transformado em filme na Suécia e em Hollywood, Deixa ela entrar, romance de estreia de John Ajvide Lindqvist (alguém consegue pronunciar, sem sentir câimbra na língua?) trata de um dos temas mais manjados da ficção: vampiros. Contudo, não me refiro a galãs que brilham no sol, nem a aristocratas dormindo em caixões. A obra de Ajvide dá outra abordagem ao mito, e, apesar de ambientado nos anos 1980 época que Michael Jackson ainda não havia decidido mudar de etnia mexe com temas atemporais: as inseguranças da juventude, a descoberta da sexualidade, as marcas que o divórcio dos pais podem deixar numa criança, etc.
Escrito em terceira pessoa, conta a história de Oskar, um menino solitário que precisa fugir dos valentões do colégio. Filho de um pai ausente e de uma mãe apática, Oskar tem uma vida carregada de melancolia. Num primeiro momento, parece um Y.A. genérico sobre bullying, mas tudo muda quando o protagonista conhece Eli, uma vampira adolescente que se muda para o apartamento ao lado. A chegada dela vai mudar a rotina dos moradores daquele conjunto habitacional, principalmente quando eles começam a morrer com a garganta dilacerada.
Paralela à amizade da dupla, testemunhamos a jornada do pedófilo Harkan. Atormentado pela própria patologia, o molestador é escravo de seus desejos por Eli, encontrando em Oskar um rival não declarado.
Com elementos de literatura policial e drama familiar, a obra segue em ritmo lento, sem pressa de desenvolver os personagens. Confesso que com exceção da tríade Oskar-Eli-Harkan, todos os coadjuvantes me pareceram enfadonhos e poderiam ter sua participação reduzida sem maiores prejuízos à trama.
Os diálogos descritos por Ajvide soam naturais, entretanto, são tão monossilábicos que o leitor fica com a sensação de que muitos personagens não tem voz própria, como se todos falassem de maneira similar. Talvez, os suecos sejam introvertidos e Ajvide quisesse retratar isso, vai saber.
A prosa é simples e de fácil leitura, podendo conquistar o leitor jovem. Ajvide tem um estilo direto que usa a repetição de palavras para reforçar ideias e sentimentos. Nas mãos de um autor menos experiente, essa técnica seria um tiro no pé, mas definitivamente não é o caso de Deixa ela entrar.
Como toda adaptação, existem diferenças entre romance e filme. Mesmo sendo mais leve que a versão literária, a película atinge o tom sombrio proposto na história original, e consegue criar um twist que não existia no livro. O romance acelera em suas últimas páginas, resultando num final anticlimático. A inesquecível cena da piscina que no filme sueco é impressionante ficou aquém do esperado.
Apesar de ser uma história de vampiros (mas não sobre vampiros) esqueça explosões ao sol ou caçadores com estacas. Deixa ela entrar é um drama de descoberta, onde as cenas de horror são ocasionais e descritas com grande impacto. Ajvide mostra perícia na hora de chocar e não está nem aí para o politicamente correto.
Protagonizado por uma criança, Deixa ela entrar é um livro pesado, indigesto, que aborda o abuso infantil sem firulas. Não é algo que indicaria aos sensíveis, mas se você prefere um terror mais cru, pode ir sem medo de ser feliz.
John Ajvide é um autor que precisa ser acompanhado de perto. Um verdadeiro alívio contra a mesmice que vemos na lista de Best-sellers.