May_ 08/08/2020
Do necessário ao intragável.
Fundação, de Azimov, é um livro problemático. Mas que, apesar de seus problemas, me cativou em certo nível.
Em termos de escrita, o autor nessa obra aposta numa abordagem que prioriza o diálogo. Tal abordagem tem seus ganhos e suas perdas. No lado dos ganhos, temos uma narrativa rápida, fluida, que apesar de não termos um personagem mor que sirva de identificação, a estrutura (que lembra um livro de contos) consegue cativar, sempre se renovar e me deixou interessado a todo o instante. Como uns 80% do texto do livro são diálogos, é fácil a imersão em uma nova história, e por mais que não existam personagem tão profundos, eles ainda assim assumem características vivas e fortes o suficiente para que o ritmo não se perca e o investimento na história não se esvaia.
No lado das perdas, tenho alguns pontos a ressaltar. Primeiro, o autor assume uma postura de iniciante ao conduzir certos diálogos expositivos. É incômodo ver o quão constante são os diálogos em que um personagem (A) explica algo para outro personagem (B), sendo que esse outro (B) já sabia desse algo. (Bastava fazer essa exposição como descrição, poxa.) Para além disso, se os diálogos ajudam na imersão, também quebram constantemente o dizer do ''mostre, não diga''. Muitos dos dramas apresentados são ditos pelos personagens, nós não vemos esse drama, por conta disso o peso de tudo é muito menor. Agora, entenda, nem todos os dramas são conduzidos assim, e muitos destes são apresentados de forma falada, mas depois são carregados para algo mais interessante, algo mostrado. O problema focal está na apresentação do drama dos personagens, penso eu. Alias, houve outras situações que esse ''mostre, não diga'' é quebrado. Um momento imbecil que ficou comigo foi na página 185 de minha edição, onde Mallow entra na dita ''fortaleza'' do Commdor Asper, e Azimov descreve o local como uma fortaleza (de fato), algo reforçado, contudo, para além de tal descrição, ele (Azimov) nos diz que a ocupação é ''inadequada para um Asper tão Bem-Amado''. Veja, autor, você já descreveu o local como um lugar de proteção ativa, não precisa dizer que algo do tipo é inadequado pra alguém que se diz ''bem-amado''. Não bastasse isso, o autor faz uma descrição semelhante mais a frente, causando uma repetição que poderia ser cortada, já que não traz nada de novo além de reforçar algo que já havia sido reforçado.
A maior parte do livro se dá em diálogos, e, como já expus, tenho problemas com a construção de muitos destes. Entretanto, ainda acho louvável o trabalho do autor no conduzir da história. A todo começo de uma nova parte eu ficava com preguiça de iniciar a leitura, mas bastava uma outra página para entrar de volta na história. Existiu essa quebra constante no ritmo, mas nada muito grave. Para além disso, tbm acho louvável a escolha para os dramas e conflitos de seus personagens. Seria muito fácil, por exemplo, o autor cair na tentação de usar as motivações/conflitos baseados em algo grande, algo que beirasse ao grandiloquente e, dessa forma, cortar a imersão e a identificação ainda mais. Contudo, boa parte do trabalho de personagem feito aqui é relacionável. As vezes beira ao grandiloquente, como o Hardin querendo fazer o bem à população, mas sempre no meio dessa narrativa maior, há o micro. Não é só pelo bem da população, é por uma visão de mundo que o personagem possui, por um embate de ideias que vemos ocorrer algumas vezes, por algo mais íntimo.
Por fim, só quero chover no molhado e expor meu repúdio à falta de representatividade nesse livro. Não ter uma personagem feminina decente é algo ultrajante. O único momento que surge uma personagem feminina, o uso dela é vergonhoso. E, no fim, se Fundação discute temas necessários (que não tratei nessa resenha) e aborda uma visão de futuro única, imaginativa e forte, também expõe um universo intragável e retrógrado, que expõe sua época da pior maneira possível.