Rhu 28/02/2021
Água Funda: O fantástico mundo de Ruth Guimarães
Ruth Guimarães em seu primeiro livro já escreve um clássico. Publicado em 1946 ?Água Funda? apresenta as histórias fantásticas da fazenda Olho d?água, um lugarzinho perdido entre sul de Minas e Vale do Paraíba e acompanha ao passar dos anos, entre o fim do período escravocrata e as primeiras décadas do século XX, as mudanças desse lugar e o medo dos moradores, sobre o olhar de um narrador maravilhoso.
Duas camadas narrativas estão presentes na obra, a história de Sinhá Carolina, de início, e que se prolonga durante toda a história e mais à frente o romance entre Joca e Curiango. Uma personagem de destaque e que guia boa parte da narrativa é a entidade Mãe de Ouro, irremediável, ela se apresenta como o destino e o medo dos personagens. As histórias contadas nos fazem lembrar das histórias de terror da infância, dá aquele frio na barriga e são histórias únicas e instigantes: são as lendas, os mistérios e as superstições desse povo.
A narrativa desse romance ? em terceira pessoa - flui como água, um grande ponto é o primeiro capítulo, somos acompanhados por um narrador, desconhecido, com poucas informações, mas que se torna nosso amigo de cara, ele aponta, mostra, como estivesse sentado do nosso lado, deixando as descrições mais claras e vibrantes. O narrador tudo vê e tudo sente. Outro fator que nos aproxima bastante é a forma como a história é contada: ao longo dos anos; boa parte da vida daquele lugar é vivida também por nós leitores. Podemos enxergar as marcas da oralidade, mais compassada e as vezes lenta, que pode causar estranheza para alguns.
Acompanhado de escrita espetacular, a autora não inventa, não força, os vocábulos são próprios daquele povo, saem naturais e fazem toda a diferença na construção da verossimilhança, a voz do caipira está ali, presente nas bebedeiras, nos casamentos e nas festas dos santos. Além da língua, os sofrimentos daquele povo também são reais, ao tratar da exploração do homem do campo que sonha em conquistar o que é seu e busca por mínimo de conforto, a autora nos alerta de uma realidade cruel e que se perpetua até hoje, temática inclusive que foi tratada por Itamar Vieira Junior em Torto Arado, publicado em 2019. Sinto que essa obra me acolheu para viver em seu mundo fantástico e por mais que a temática me agrada muito, confesso que fui surpreendido. Uma obra que deve ser conhecida e divulgada, traz temas pertinentes e uma escrita maravilhosa.