spoiler visualizarEuriano 09/12/2021
A Cruz do Rei
Veja só, o Evangelho de Marcos possui mais uma característica que o torna ideal para nossos propósitos aqui. O relato de Marcos acerca da vida de Jesus nos é apresentado em dois atos simétricos: a identidade de Jesus como Rei sobre todas as coisas (nos capítulos 1 a 8 de Marcos) e seu propósito em morrer na cruz (nos capítulos 9 a 16 de Marcos).
A estrutura deste livro segue seu título: ele tem duas partes (?o Rei? e ?a cruz?), cada qual composta de vários capítulos, sendo que cada capítulo explora uma parte essencial dessa história contada no Evangelho de Marcos.
CAPÍTULO 1: DANÇA
MARCOS NÃO PERDE tempo em revelar a identidade daquele que é o tema de seu livro. De forma abrupta e direta, ele afirma que Jesus é o ?Cristo? e o ?Filho de Deus?. Christos é um termo grego que significa uma ?figura real ungida?. Era outro modo de se referir ao ?Messias?, aquele que iria vir e aplicar o governo de Deus na terra, salvando Israel de todos os seus opressores e problemas. Ele não seria apenas mais um rei, mas sim o Rei.
Na cena do batismo, três participantes estão presentes: o Pai, que é a voz; o Filho, que é a Palavra; e o Espírito descendo como uma pomba. Marcos está deliberadamente nos levando de volta à criação, ao próprio começo da história. Assim como a criação original do mundo fora um projeto do Deus triúno, segundo Marcos, a salvação e restauração de todas as coisas, que estava começando naquele momento com a chegada do Rei, também era um projeto do Deus triúno.
Nas palavras do meu autor favorito, C. S. Lewis: ?No cristianismo Deus não é algo estático [?], mas sim dinâmico, uma atividade pulsante, uma vida, quase que uma espécie de drama. Quase que, se você não me achar irreverente, uma espécie de dança?.1
ENTRANDO NA DANÇA
Por que um Deus triúno criaria o mundo? Se ele fosse um Deus unipessoal, você poderia dizer: ?Bem, ele criou o mundo para que tivesse seres que o amassem e o adorassem, que lhe trouxessem alegria.? Mas o Deus triúno já tinha tudo isso ? e em si mesmo ele recebia amor de uma forma muito mais pura e poderosa do que os seres humanos poderiam lhe dar. Então, por que ele iria nos criar? Há somente uma resposta. Ele deve ter-nos criado não para receber alegria, mas para dar. Ele deve ter-nos criado para nos convidar a entrar na dança, para dizer: Se você me glorificar, se centralizar sua vida em torno de mim, se apreciar minha beleza por aquilo que sou em mim mesmo, então você entrará na dança, que é o motivo pelo qual você foi criado. Você foi criado não apenas para crer em mim ou para ser espiritual em um sentido geral, não só para orar e encontrar um pouco de inspiração para os momentos difíceis. Você foi criado para centralizar tudo em sua vida em torno de mim, para pensar tudo em termos de seu relacionamento comigo. Para me servir incondicionalmente. É nisso que você encontrará sua felicidade. É disso que trata a dança.
DANÇANDO PARA A BATALHA (GÊNESIS X MARCOS)
Imediatamente após seu batismo, Jesus se encontra no deserto.
Marcos entrelaça seu relato na história compartilhada por seus leitores ao tecer paralelos entre as Escrituras hebraicas e a vida de Jesus. Em Gênesis: O Espírito paira sobre a face das águas, Deus fala e o mundo é criado, a humanidade é criada, a história iniciada. E qual é a próxima coisa que acontece? Satanás tenta os primeiros seres humanos, Adão e Eva, no jardim do Éden.
Agora aqui em Marcos temos: o Espírito, a água, Deus falando, uma nova humanidade, a história sendo alterada ? do mesmo modo como aconteceu no passado ?, com Satanás tentando Jesus no deserto. A escolha de palavras por parte de Marcos é intencional; ele diz que Jesus estava ?com as feras?. Na época em que Marcos escreveu seu Evangelho, os cristãos eram lançados às feras. De forma nada surpreendente, muitos dos que sobreviviam eram tentados a duvidar de suas convicções, a diminuir seu compromisso com Deus. Mas aqui eles veem Jesus, como Adão, vivendo um relacionamento espetacular com Deus e, então, tendo que lutar com uma ameaça.
Deus nos criou para girarmos em torno dele, para centralizarmos nele nossa vida. Quando Deus diz ?Não comas ou morrerás?, qual é a nossa primeira reação? ?Por quê??
Deus estava dizendo: ?Porque você me ama, não coma daquela árvore ? somente pelo fato de que lhe digo para agir assim. Esteja somente em relacionamento comigo. Obedeça-me a respeito da árvore e viverá.? Mas Adão não fez isso. Ele e Eva não passaram no teste; e toda a raça humana tem fracassado nesse mesmo teste desde então.
Na realidade, a mesma coisa acontece a Jesus no deserto. Embora Marcos não nos diga qual foi a tentação de Jesus, o Evangelho de Mateus nos conta. Seu relato (em Mateus 4.1-11) basicamente diz que Satanás tenta Jesus a sair da órbita que gira em torno do Pai, do Espírito e de nós. Tenta-o a se proteger, e a fazer com que todo mundo se centralizasse nele. E essa tentação evidentemente não termina com o deserto: por todo o restante de sua vida Jesus é atacado por Satanás, e esse ataque alcança um clímax em outro jardim, no Getsêmani, o oposto supremo do jardim do Éden.
CAPÍTULO 2: O CHAMADO
NA PRIMEIRA VEZ em que ouvimos a voz de Jesus no Evangelho de Marcos, ele diz: ?Arrependei-vos e crede no evangelho?.
O verbo arrepender aqui significa ?dar meia-volta? ou ?afastar-se de algo?. Na Bíblia, ele se refere especificamente a se afastar das coisas que Jesus abomina e se voltar para as coisas que ele ama. Euangelion, no grego, termo traduzido como ?boas-novas? ou ?evangelho?, é uma combinação de angelos, termo que designa aquele que anuncia as novas, e o prefixo eu-, que significa ?jubiloso?. O termo evangelho, portanto, significa ?as novas que trazem alegria?. Esse termo estava em uso quando Marcos o utilizou, mas não em um contexto religioso. Ele significa a nova ou a notícia capaz de fazer história, de mudar a vida, e não apenas uma notícia corriqueira.
Um evangelho é um anúncio de algo que aconteceu na história, de algo que foi feito por você e que mudou sua condição para todo sempre.
E é bem nesse ponto que você pode ver a diferença entre o cristianismo e todas as demais religiões, incluindo aquela dos que não têm religião. A essência das outras religiões é o conselho; já o cristianismo é essencialmente boas-novas.
As outras religiões dizem: ?Isso é o que você deve fazer para estar ligado a Deus para sempre; é assim que você deve viver para ganhar acesso a Deus?. Mas o evangelho diz: ?Isso é o que foi feito na história.
O evangelho está no fato de que você tem acesso a Deus não com base em algo que você tenha feito (ou tenha deixado de fazer), mas com base naquilo que Jesus fez, na história, por você. E isso torna o cristianismo e o evangelho absolutamente diferentes de qualquer outra religião ou filosofia. O evangelho não é um peso, mas é libertação.
Eu me recordo de um trecho da obra de Tolkien, O Senhor dos anéis: ?As mãos do rei são mãos que trazem a cura; e as sim será conhecido o rei legítimo?.1 Assim como uma criança desabrocha sob a autoridade de um pai sábio e bondoso, assim como um time se desenvolve sob a liderança de um treinador talentoso e brilhante, quando você estiver sob a cura das mãos do rei, sob o senhorio de Jesus, tudo em sua vida vai se restaurar. E, quando ele voltar, tudo que é triste deixará de ser verdade. Sua volta introduzirá o fim do medo, do sofrimento e da morte.
Nesse ponto, o cristianismo novamente difere das demais religiões. Algumas religiões pregam que este mundo material chegará ao fim, que as pessoas justas ou iluminadas serão resgatadas dele e entrarão em uma espécie de paraíso espiritual etéreo. Outras dizem que este mundo material é uma ilusão. Ou talvez você acredite que a terra no futuro irá se consumir com a morte do sol, e tudo se desintegrará como se nunca houvesse existido. Mas a boa-nova do reino de Deus é que este mundo material que Deus criou será restaurado, para que dure para sempre.
?Finalmente cheguei em casa! Este é meu verdadeiro país? Esta é a terra que venho procurando por toda a minha vida?. Unicórnio em crônicas de Nárnia, Lewis
SEGUINDO O REI
Jesus imediatamente chama pessoas a segui-lo. Isso é algo sem paralelo na tradição judaica. Os pupilos escolhiam os rabis (ou mestres), e não o contrário. Aqueles que queriam aprender algo procuravam um rabi e diziam: ?Quero estudar com você?. No entanto, Marcos está nos mostrando que Jesus possui um tipo de autoridade diferente de um rabi comum. Não se pode ter um relacionamento com Jesus a menos que ele chame você.
Em nossa cultura individualista, por outro lado, dizer adeus para os pais não é grande coisa, mas, se Jesus dissesse ?Quero ter prioridade sobre a sua carreira?, isso sim seria drástico para nós.
COMO ASSIM? ÓDIAR A FAMÍLIA?
?Se alguém vier a mim, e amar pai e mãe, mulher e filhos, irmãos e irmãs, e até a própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo? (Lc 14.26).
Por que ele fala em ódio? Em uma série de outras passagens, Jesus fala que não podemos odiar nem mesmo nossos inimigos. Então o que ele quer dizer quando fala em odiar pai e mãe? Jesus não nos chama a odiar de forma ativa, mas sim de forma comparativa. Ele diz: ?Quero que vocês me sigam de forma tão plena, tão intensa, de maneira a suportar todas as coisas, que todos os demais vínculos que tiverem na vida parecerão ódio, quando comparado à forma como vocês me seguem?. Se você disser: ?Eu obedecerei a ti, Jesus, se tiver sucesso em minha carreira, se minha família for unida?, então, o seu verdadeiro objetivo, o seu verdadeiro mestre é aquilo que está por trás desse se. Mas Jesus não será um meio para um fim; ele não será usado. Se ele chama você a segui-lo, o objetivo deve ser ele.
JESUS ENSINAVA COM AUTORIDADE (MC 1:21,22)
Marcos usa o termo autoridade pela primeira vez; a palavra literalmente significa ?algo derivado de uma fonte original?. Vem da mesma raiz que a palavra autor. Marcos quis dizer que Jesus os ensinava com autoridade original, e não derivada. Ele não apenas esclarecia algo que eles já soubessem ou simplesmente interpretava as Escrituras do mesmo modo que os mestres da lei faziam. Seus ouvintes de algum modo sentiam que Jesus estava explicando a história da vida deles como autor dessa história, e isso os deixava sem palavras.
CAPÍTULO 3: A CURA
Jesus se volta para o homem paralítico e, em vez de dizer ?levanta-te, estás curado?, diz: ?Filho, os teus pecados estão perdoados?.
Jesus está dizendo a ele: ?Entendo seus problemas. Eu vi seu sofrimento. Daqui a pouco tratarei disso. Mas, por favor, perceba que o principal problema na vida de uma pessoa nunca é seu sofrimento, mas sim seu pecado.? Você se ofendeu com essa resposta de Jesus? Então, por favor, considere o seguinte. Imagine que alguém dissesse a você: ?O principal problema na sua vida não é o que lhe aconteceu nem o que as pessoas lhe fizeram; seu principal problema é o modo como você reagiu a tudo isso?. Ironicamente isso fortalece você. Por quê? Ora, porque você pouco pode fazer a respeito do que lhe aconteceu ou do que as pessoas lhe fizeram ? mas você pode fazer algo a respeito de si mesmo. Quando a Bíblia fala de pecado, não está se referindo apenas às coisas más que fazemos. Pecado não é só mentir, cobiçar, ou qualquer outra coisa do gênero ? é ignorar a Deus no mundo que ele criou, é rebelar-se contra ele ao viver sem fazer referência a ele. É dizer: ?Decidirei exatamente como quero viver minha vida?. Jesus diz que esse é o nosso principal problema.
Com toda certeza, esse homem estava depositando todas as suas esperanças na possibilidade de voltar a andar. Em seu coração, certamente ele dizia: ?Se pudesse voltar a andar, estaria feito na vida. Nunca mais seria infeliz, nunca mais reclamaria de nada. Se pudesse voltar a andar, tudo o resto ficaria bem.? Mas Jesus lhe dizia: ?Você está enganado, meu filho?. Isso pode até parecer meio cruel, mas é uma profunda verdade. Jesus está dizendo: ?Quando eu curar seu corpo, se isso for tudo que eu fizer, você achará que nunca mais será infeliz novamente. Mas espere alguns meses, pois essa euforia não dura muito, ela vai passar. As raízes do descontentamento que habita o coração humano são profundas.?
?Acho que, quando Deus quer fazer uma brincadeira de mau gosto com a gente, ele realiza o sonho que mais acalentamos? Cynthia Hamel, jornalista
A Bíblia diz que nosso verdadeiro problema é que todos nós construímos nossa identidade sobre qualquer coisa, menos Jesus. Pode ser o sucesso na carreira ou mesmo algum relacionamento ? ou até mesmo se levantar da maca e sair andando ?, mas estamos sempre dizendo: ?Se conseguisse isso, realizaria meu grande sonho e, então, tudo o mais ficaria bem?. E sonhamos que aquilo poderá nos salvar do esquecimento, da desilusão, da mediocridade. Fazemos desse desejo o nosso salvador.
INDO MAIS FUNDO
C. S. Lewis colocou isso de uma forma poética em The Voyage of the Dawn Treader [A Viagem do Peregrino da Alvorada]. No enredo, existe um garoto chamado Eustáquio. Todos o odeiam, e ele odeia a todos. Ele é egoísta, maldoso, e ninguém consegue se dar bem com ele. De repente, como num passe de mágica, ele se vê em um navio, o Peregrino da Alvorada, em uma grande viagem. Em determinado ponto da viagem, o navio para em uma ilha. Andando pela ilha, Eustáquio encontra uma caverna, repleta de diamantes, rubis e ouro. Ele pensa: ?Puxa, estou rico!? Na mesma hora, por ser como ele é, pensa que agora vai conseguir dar o troco em todo mundo. Todos que tinham rido dele, pisado nele ou lhe feito alguma desfeita receberiam o troco. Então, sobre a pilha de tesouro ? que era de um dragão, embora ele sequer imaginasse isso ?, ele pega no sono. No entanto, por ele ter caído no sono com a cabeça cheia de gananciosos pensamentos de dragão, quando acorda percebe que ele próprio se transformou em um dragão ? um dragão enorme, terrível e horroroso. Ele logo percebe que não tem saída. Não pode voltar para o navio, por isso será deixado para trás na ilha e será essa criatura horrenda pelo resto da vida. Então, o garoto entra em desespero.
Certo dia, Aslan, o leão, aparece, leva Eustáquio até uma piscina de águas claras e diz a ele para se despir e pular na água. De repente, Eustáquio percebe que ?se despir? significa ?livrar-se da pele de dragão?. Ele começa a morder e arrancar com as garras as camadas de pele, e assim descobre que pode arrancar aquela pele de dragão. Em um esforço contínuo, ele finalmente consegue arrancar toda a pele ? mas, para seu desalento, descobre que, por baixo daquela pele, havia outra pele de dragão. Por mais duas vezes tenta arrancá-la, mas sem sucesso; a cada vez a mesma coisa acontece. No final, o leão diz a ele: Você vai ter que me deixar ir mais a fundo. E veja como Eustáquio conta essa história mais tarde:
Tive medo de suas garras, confesso a você, mas eu estava à beira do desespero [?] O primeiro rasgo que ele fez foi tão profundo que pensei que houvesse me atingido direto no coração. Quando ele começou a arrancar aquela pele, doeu mais do que qualquer outra coisa que já senti [?] Bem, ele arrancou por completo aquela pele animalesca ? como eu pensava ter feito eu mesmo naquelas três vezes, com a diferença de que não havia doído antes ? e lá estava ela sobre a grama: só que esta, em relação às outras peles, parecia bem mais grossa, escura e cheia de calombos [?] Então ele me segurou [?] e me jogou na água. Ardeu mais do que tudo, mas só por um instante [?] Então percebi [?] que eu havia voltado a ser um menino.2
Para muitos de nós, é difícil ler essa passagem do livro sem se comover. Afinal, assim como o homem paralítico, assim como Eustáquio, pensávamos que, se tivéssemos uma pequena ajuda, conseguiríamos salvar a nós mesmos. Mas aprendemos que Jesus queria que fôssemos mais a fundo. Tivemos que permitir que ele usasse suas garras para chegar ao nosso coração e reconfigurar a essência daquilo que nosso coração desejava. Veja bem, o problema não era o nosso mais profundo desejo, assim como não era errado que o paralítico quisesse andar, ou que a celebridade quisesse fazer sucesso, ou que Eustáquio quisesse ser amado e respeitado. O fato de pensarmos que a realização do nosso mais profundo desejo iria nos curar, nos salvar ? esse sim era o verdadeiro problema. Tivemos que permitir que nosso Salvador fosse Jesus.
O ÚNICO QUE PODE PERDOAR PECADOS
Vamos imaginar que Fulano, Beltrano e Sicrano estão conversando. De repente, Fulano dá um soco bem na boca de Beltrano. Há sangue para todo lado. Sicrano se dirige a Fulano e diz: ?Fulano, eu perdoo você por ter dado um soco em Beltrano. Está tudo bem. Vamos esquecer isso?. O que Beltrano dirá tão logo ele se acalme? ?Sicrano, você não pode perdoá-lo, só eu posso. Ele não agiu mal com você, mas sim comigo?. Você só pode perdoar um pecado se ele tiver sido praticado contra você. É por isso que, quando Jesus olha para o homem paralítico e diz, ?Filho, os teus pecados estão perdoados?, ele na verdade está dizendo: ?Seus pecados foram realmente contra mim?. A única pessoa que pode dizer isso para um ser humano é o Criador. Jesus Cristo, ao perdoar os pecados do homem, alega ser o Deus todo-poderoso. Os escribas sabiam disso: aquele homem não estava apenas alegando fazer milagres, mas sim que era o Senhor do universo ? e eles ficaram compreensivelmente irados com isso.
AS OUTRAS COISAS QUE SERÃO ACRESCENTADAS
Nesse processo de lidar com o que pensávamos ser nossos desejos mais profundos, descobriremos que Jesus nos revela um desejo mais profundo e mais verdadeiro que estava oculto: nosso anseio por ele mesmo, Jesus. E ele não apenas atenderá o nosso desejo, ele o cumprirá. Ele não fará a brincadeira de mau gosto de conceder a você seu desejo mais profundo ? não até que lhe mostre que esse desejo mais profundo era por ele, desde o início.
CAPÍTULO 4: O DESCANSO
JESUS ALEGOU SER capaz de perdoar pecados e os escribas consideraram isso uma blasfêmia. Mas Jesus prosseguiu e fez uma afirmação tão ultrajante que os fariseus ficaram sem palavras. Ele declarou que não tinha vindo para fazer uma reforma religiosa, mas para acabar com a religião e substituí-la por si mesmo.
Mc 2:23-28 e Mc 3:1-6
RELIGIÃO VERSUS EVANGELHO
Algumas religiões são o que se pode chamar de nacionalistas: você tem acesso a Deus, segundo ele, entrando para aquele determinado grupo e assumindo os traços característicos de um membro da quela sociedade. Outras são espiritualistas: você tem acesso a Deus trabalhando para conquistar esse acesso por meio de certas transformações da consciência. Já outras religiões são legalistas: existe um código de conduta e, se você segui-lo, Deus o favorecerá. No entanto, apesar das diferenças, todas elas seguem a mesma lógica: se eu fizer tudo que é exigido, se eu obedecer a tudo, serei aceito. O evangelho de Cristo não é apenas diferente, mas totalmente oposto a tudo isso: sou plenamente aceito em Jesus Cristo e, portanto, obedeço.
O SENHOR DO SÁBADO
A palavra sábado significa um descanso profundo, uma paz profunda. É um sinônimo bem próximo de shalom ? um estado de integridade, de abundância em todas as dimensões da vida. Quando Jesus diz que ele é Senhor do sábado, está dizendo que ele é o sábado. Ele é a fonte do descanso profundo de que tanto precisamos. Ele veio para mudar completamente a maneira como descansamos. Esse um dia por semana de descanso que guardamos é somente um começo do descanso divino profundo que precisamos, e a fonte dele é Jesus.
?Como é possível viver com o aterrador pensamento de que o furacão se tornou humano, de que o fogo se fez carne, de que a própria vida se tornou vida e caminhou entre nós? Ou o cristianismo significa tudo isso ou não significa nada. Ou é a mais devastadora revelação da realidade mais profunda do mundo ou é uma fraude, um disparate ou parte de uma comédia enganosa. A maioria de nós, incapazes de lidar com o fato de dizer uma coisa ou outra, condena-se a viver no mundo superficial entre elas.? N.T. Wright
FARISEUS E OS HERODIANOS
No final desse confronto com os líderes religiosos no sábado, Marcos registra uma incrível declaração que sintetiza um dos temas principais do Novo Testamento: ?Mas, assim que saíram dali, os fariseus conspiraram com os herodianos contra ele, a fim de o matar?.
Os herodianos eram o grupo formado por aqueles que apoiavam Herodes, o mais sórdido dos reis corruptos que governaram Israel, que representava o poder de ocupação de Roma e seu sistema político.
Os herodianos mudavam de acordo com os tempos, enquanto os fariseus defendiam os valores tradicionais. Os fariseus acreditavam que a sociedade estava sendo esmagada pelo pluralismo e paganismo, e clamavam por um retorno aos valores morais tradicionais. Há muito tempo esses dois grupos encaravam-se como inimigos ? mas agora eles concordavam em uma coisa: tinham que se livrar de Jesus. Eles não tinham o hábito de cooperar entre si, mas agora estavam cooperando. De fato, os fariseus, os religiosos, tomaram a iniciativa de fazer isso.
É por isso que digo que essa declaração sintetiza um dos temas principais do Novo Testamento. O evangelho de Cristo é uma ofensa tanto para religiosos quanto para não religiosos. Não pode ser agregado pelo moralismo nem pelo relativismo.
CAPÍTULO 5: PODER
CADA PARTE da história contada por Marcos revela um pouco mais sobre quem Jesus é ? seu poder, propósito e como ele via a si mesmo. Marcos vai revelando Jesus gradualmente, como um experiente contador de histórias.
Uma das marcas de um relato testemunhal é o ?detalhe irrelevante?.1 História de ficção, inventada, contém detalhes que conduzem a narrativa adiante ou passam uma mensagem que o autor quer transmitir. Já testemunhas relatam muitos detalhes pelo simples fato de se lembrarem deles. É bem verdade que os escritores de ficção de hoje em geral acrescentam detalhes às suas histórias para deixá-las mais realistas. Mas não era dessa forma que as lendas se formavam nos tempos antigos. Segundo Bauckham, estudiosos que acreditam que o Evangelho de Marcos seja uma ficção têm dificuldade de explicar por que, na história que estamos prestes a ler, Marcos conta que Jesus passou para o outro lado do mar da Galileia e havia outros barcos que o seguiam, ou por que ele acrescenta a informação de que Jesus estava na popa, dormindo sobre uma almofada. Detalhes desse tipo não fazem o enredo avançar nem desenvolvem as personagens. Vincent Taylor, importante estudioso da Bíblia do século 20, afirmou que esses detalhes eram ?tão desnecessários à história? que eram, portanto, sinais de ?genuína reminiscência?.
CARACTERÍSTICAS DA CHUVA NO MAR DA GALILÉIA
O mar da Galileia fica a 213 metros abaixo do nível do mar, e a apenas cerca de 48 quilômetros ao norte está o monte Hermom, com 2.800 metros de altura. O ar frio vindo das montanhas constantemente se choca com o ar quente que sobe do mar da Galileia; em consequência disso, caem impressionantes aguaceiros e tempestades com raios. Pescadores profissionais da Galileia (como os discípulos de Jesus) estavam acostumados a isso. Por esse motivo, essa tempestade em particular deve ter sido incrível, pois mesmo sendo pescadores experientes, eles pensaram que iriam morrer.
O PODER DE JESUS
Algo que era consenso entre as culturas da antiguidade era o fato de que o mar era uma força incontrolável por qualquer poder que fosse, exceto por Deus. Nas culturas e lendas antigas, o mar era um símbolo de destruição que ninguém era capaz de deter. O oceano em plena fúria era um poder ingovernável, inexorável e somente Deus podia controlá-lo.
Jesus, porém, é capaz de exercer o poder que pertence somente a Deus. Lembre-se, ele não invocou uma autoridade superior e nem tampouco apelou para magia. Quem ler qualquer dessas lendas antigas sobre milagres verá que a pessoa que faz o milagre invoca um poder superior.
Isso é uma reivindicação de poder. E se é verdadeira, quem é essa pessoa e o que essa reivindicação significa para nós? Temos duas opções. Você pode argumentar que este mundo é um simples resultado de uma ?tempestade? monumental ? que você está aqui por mero acaso, por meio de forças da natureza cegas e violentas, por meio de um big bang ? e quando morrer vai virar pó. E quando o sol se apagar, não haverá ninguém que se lembre de algo que você tenha feito; Contudo, se Jesus é quem ele diz ser, há outro modo de olharmos para a vida. Se ele é o Senhor da tempestade, então não importa em que estado o mundo ou sua vida se encontra ? você verá que Jesus lhe fornece toda cura, todo descanso e todo poder que você possa querer.
DEUS ESTÁ DORMINDO?
Antes de Jesus acalmar a tempestade, eles estavam com medo ? mas depois que ele a acalmou, eles ficaram aterrorizados. Por quê?
O barco estava prestes a ficar completamente inundado e todos iriam morrer. Então, despertaram Jesus e disseram: ?Mestre, não te importas que pereçamos?? Essa imagem mexe com nosso coração, pois qualquer um que tentou viver uma vida de fé neste mundo já se sentiu assim algum dia. Tudo está dando errado, você está afundando, e Deus parece estar dormindo, distante, sem saber do seu sofrimento. Em outras palavras, os discípulos estavam dizendo a Jesus: ?Se você nos amasse, não nos deixaria passar por isso. Se você nos amasse, não estaríamos prestes a morrer afogados. Se você nos amasse, não nos deixaria passar por esse perigo mortal?.
Jesus acalmou a tempestade e então deu uma resposta a eles. Por acaso ele disse que podia entender o que eles sentiam? Não, ele lhes perguntou: ?Por que estais tão amedrontados?? Você pode imaginar o que se passava na cabeça dos discípulos? Ora, por que estamos tão amedrontados? É óbvio! Estávamos com medo de morrer afogados. Estávamos com medo de que você não nos amasse, pois se amasse, não deixaria essas coisas nos acontecerem.
No entanto, a pergunta que Jesus fez a eles tinha por trás o seguinte pensamento: A premissa de vocês está errada. Vocês deveriam saber que eu permito as pessoas que amo atravessem tempestades. Vocês não têm razão para entrar em pânico.
Mas Marcos escreve: ?Eles ficaram apavorados e diziam uns aos outros: Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem??
Por que eles ficaram mais apavorados com a calmaria do que com a tempestade? Porque Jesus era alguém que não se podia controlar, assim como a tempestade. Esta tinha um poder imenso ? eles não puderam controlá-la. Como Jesus tinha infinitamente mais poder do que a tempestade, eles tinham ainda menos controle sobre ele. Mas há uma enorme diferença. Uma tempestade não ama ninguém.
Jesus permite que aconteçam coisas que não compreendemos. Ele não faz as coisas de acordo com os meus planos ou de um modo que faça sentido para mim. Contudo, se Jesus é Deus, ele deve ser grande o bastante para ter motivos para deixar que você passe por coisas que não consegue compreender. O poder dele é ilimitado, assim como também o são sua sabedoria e seu amor. A natureza nos olha com indiferença, mas Jesus está repleto de um amor incontrolável por nós. Se os discípulos tivessem realmente compreendido que Jesus os amava, que ele era tanto poderoso quanto amoroso, não teriam ficado com medo.
FÉ
Imagine que você esteja caindo de um precipício e percebe que existe um galho que brota na encosta desse precipício. Ele é forte o suficiente para sustentá-lo, mas você não sabe o quão forte ele é. Enquanto está caindo, você só tem tempo para agarrá-lo. Quanta fé você precisa ter nesse galho para que ele salve você? Precisa estar cem por cento certo de que ele pode salvar você? Não, é claro que não.
Só precisa ter fé suficiente para agarrá-lo. Isso acontece porque não é a qualidade de sua fé que salva você, mas sim o objeto de sua fé. Não importa como você se sente a respeito do galho; tudo que importa é o galho em si. Jesus é como esse galho.
Quem tem mais fé não deve julgar com rigor aqueles que têm menos fé. Por quê? Porque a fé, em última análise, não é uma virtude; é uma dádiva, um dom.
Se você quer ter fé, mas não consegue, pare de olhar para dentro de si mesmo; vá até Jesus e diga: ?Ajuda-me a crer?. Vá até ele e diga: ?Então é você que concede o dom da fé! Tenho tentado encontrar a fé por meio da razão, da reflexão, da meditação, indo à igreja na esperança de que algum sermão toque meu coração ? tenho tentado com todas as minhas forças encontrar a fé por mim mesmo. Só agora vejo que você, Jesus, é a fonte da fé. Por favor, conceda-me fé.? Se fizer isso, descobrirá que Jesus tem estado à sua procura ? ele é o autor e aquele que nos concede a fé, e é também o objeto da nossa fé.
JONAS E JESUS
Marcos deliberadamente escreveu esse relato em uma linguagem que é paralela, quase que idêntica, à linguagem de um famoso relato do Antigo Testamento, a história de Jonas. Tanto Jesus quanto Jonas estavam em um barco, e ambos os barcos estavam ameaçados por uma tempestade ? as descrições dessas tempestades são praticamente idênticas! Tanto um quanto outro estavam adormecidos. Nas duas histórias foram acordados por pessoas que estavam no barco e diziam: ?Vamos morrer aqui?. E nos dois casos houve uma intervenção divina miraculosa, e o mar acalmou-se. A seguir, nas duas histórias, as pessoas ficam ainda mais atemorizadas do que estavam antes que a tempestade se acalmasse. São, enfim, duas histórias praticamente idênticas ? existe apenas uma diferença. No meio da tempestade, Jonas disse algo assim aos marinheiros: ?Se eu perecer, vocês vão sobreviver. Se eu morrer, vocês viverão? (Jn 1.12). Então, eles lançaram-no ao mar. Isso não acontece no relato de Marcos. Ou acontece? Acredito que Marcos está mostrando que as histórias não são de fato diferentes, quando você se afasta um pouco e olha para elas sob a ótica da história completa de Jesus. No Evangelho de Mateus, Jesus diz: ?E aqui está quem é maior que Jonas? (Mt 12.41). Jesus refere-se a si mesmo: Eu sou o verdadeiro Jonas. Com isso ele quis dizer o seguinte: um dia vou acalmar todas as tempestades, fazer parar as ondas. Vou destruir a destruição, fragmentar a fragmentação humana, matar a morte. Como pode ele fazer isso? Ele pode somente porque, quando estava na cruz, ele foi lançado ? voluntariamente, assim como Jonas ? dentro da maior das tempestades, à mercê das maiores ondas que existem, as ondas do pecado e da morte. Jesus foi atirado à única tempestade que de fato pode nos afundar ? à tempestade da justiça eterna, da dívida que temos por causa de nossas transgressões. Essa tempestade não se acalmou, enquanto não o arrastou por completo.
CAPITULO 6: A ESPERA
Marcos registra o encontro de Jesus com um líder religioso chamado Jairo, um dos chefes da sinagoga. Ele deve ter sido um homem altamente dedicado a Deus, moralmente respeitável, assim como uma pessoa de muitas posses e socialmente importante. Jairo era uma
autoridade, contudo, ele se prostra aos pés de um carpinteiro Galileu. É algo bem fora do comum, não é? O homem devia estar desesperado. Mas, afinal, qual era o problema?
Sua filhinha estava para morrer. Esta é a linguagem que ele usa para descrever a situação: ela morreria a menos que Jesus o acompanhasse. Diante disso, dá para imaginar a agitação de Jairo quando percebe que há esperança para sua filhinha que está morrendo; no entanto, por dentro ele deveria estar morrendo de medo que ele e Jesus não chegassem a tempo. Assim, Jesus, Jairo e os discípulos se apressam até a casa de Jairo, e são seguidos por uma multidão ansiosa por ver outro milagre.
A multidão comprimia Jesus, e nela havia uma mulher que já havia sofrido muito nas mãos de vários médicos, sem obter melhora alguma; pelo contrário, piorava.
Essa mulher tocou-lhe as vestes e foi curada, e ouvimos que Jesus logo percebeu que dele havia saído poder. Essa é a primeira vez que é usado no livro de Marcos o termo grego dunamis (?poder?), de onde vem a palavra dinamite. Jesus tem uma sensação de fraqueza, de que algo havia saído dele e sabe que houve uma cura. Ele havia perdido poder para que ela pudesse ganhar. Ele para a pequena comitiva, a corrida de emergência, olha em volta e diz: ?Quero saber quem me tocou?.
Quando Jesus descobre a pessoa que fora curada pelo poder que dele saíra, ele para e faz com que ela lhe conte ?toda a verdade?, a história toda sobre o que acontecera.
Imagine a ansiedade de Jairo com tudo isso; a irritação dos discípulos; a paciência e a calma de Jesus. Aquela mulher que sofria de uma doença crônica estava recebendo atenção, em vez da garotinha que sofria de uma doença fatal. Jesus opta por parar e conversar com a mulher que acabara de ser curada. Isso não faz sentido. É absolutamente irracional. Na verdade, é pior que isso: é uma conduta negligente. Se essas duas pessoas estivessem em uma sala de emergências, qualquer médico que tratasse primeiro da mulher e deixasse a garotinha morrer seria processado por negligência profissional. E Jesus está se comportando como um médico imprudente. Jairo e os discípulos devem estar pensando: ?O que ele está fazendo? Será que ainda não entendeu a situação? Corra ou será muito tarde. A garotinha precisa de sua ajuda agora, Jesus. Corra, Jesus, corra?.
Jesus, porém, não se deixa apressar. Enquanto ele permanece lá, conversando com a mulher, aquilo que Jairo mais temia acontece, a menina morre (Mc 5:35).
Mas Jesus olha pra Jairo e diz: não temas, crê somente.
A noção de Deus sobre o tempo certo nos deixa perplexos, não importa a cultura a que pertencemos. Sua graça dificilmente acontece de acordo com a agenda que estipulamos. Quando Jesus olha para Jairo e diz ?Não temas, crê somente?, na verdade ele está olhando para todos nós e dizendo: ?Vocês se lembram de como acalmei a tempestade, de quando lhes mostrei que minha graça e meu amor são compatíveis com o fato de passarem por tempestades, embora vocês possam não achar que sejam? Bem, agora estou dizendo a vocês que minha graça e meu amor são compatíveis com atrasos que lhes parecem injustificáveis?. Ele não está dizendo ?Não me deixarei apressar embora ame vocês?, mas sim ?Não me deixarei apressar porque amo vocês. Sei o que estou fazendo. Se tentarem impor a mim sua noção do tempo certo, terão problemas para se sentirem amados por mim.? Jesus não se deixará apressar e, em consequência disso, nós em geral nos sentimos exatamente como Jairo, impaciente por ele estar se atrasando de forma irracional, injustificável e excessiva.
MAIS DO QUE PEDIMOS OU PENSAMOS
Contudo, precisamente por causa do atraso de Jesus tanto a mulher quanto Jairo saíram com muito mais do que haviam pedido. Preste atenção, quando procura a ajuda de Jesus, você tanto dá quanto recebe dele muito mais do que pediu. Seja paciente, pois a situação toda em geral não sai do jeito que você esperava.
Todavia, quando vamos até Jesus em busca de ajuda, também acabamos dando a ele mais do que esperávamos a princípio. Jairo viera até ele com a ideia de que teria que confiar em Jesus o suficiente até chegar em sua casa, e esperava que de algum modo sua filha não morresse antes que ele chegasse. Mas Jesus exigiu mais dele: depois que a menina morreu, por causa da aparente negligência do Grande Médico, Jesus olhou diretamente em seus olhos e disse: ?Confie em mim?. Ora, isso era um teste de fé bem maior do que qualquer coisa que Jairo tinha antecipado.
Ou veja, por exemplo, a mulher enferma. Ela buscara Jesus para ser curada. Mas ela queria apenas lhe tocar as vestes e ir embora. Queria apenas dizer, ?Estou melhor, agora vou sumir daqui?, algo simples assim. Mas Jesus não permitiria. Ele a fez se revelar em público. Lembre-se de que isso era algo muito ameaçador para ela, pois vinha sofrendo de um fluxo hemorrágico, o que a tornava cerimonialmente impura. Por isso, tocar um Rabi em público era quebrar um grande tabu. Desse modo, a exigência de Jesus no sentido de que ela se identificasse era uma coisa que ela temia muito.
Se você for até Jesus, ele pode lhe pedir bem mais do que a princípio você havia planejado, mas ele também pode dar-lhe infinitamente mais do que você jamais ousaria pedir ou sonhar.
Será que neste momento Deus está atrasando alguma coisa em sua vida? Você está a ponto de desistir? Está impaciente com Deus? Pode ser que exista algum fator crucial que você ignora. Sua resposta, assim como a que foi dada para Jairo, é que confie em Jesus.
TALITA, MEU AMORZINHO, CUMI, LEVANTA
Jesus senta-se ao lado da menina, toma a mão dela e lhe diz duas palavras. A primeira é Talita. Literalmente significa menina, mas isso não capta o sentido do que ele estava dizendo. Ele estava usando um diminutivo, uma forma carinhosa de se referir à menina. Uma vez que é um diminutivo que uma mãe usaria em relação à sua filha, é provável que a melhor tradução para essa palavra seja ?meu amorzinho?. A segunda palavra que Jesus diz é cumi que significa ?levanta?. Não significa ?ressuscita?, significa somente ?levanta?. Jesus está fazendo exatamente o que os pais dessa menina fariam em uma ensolarada manhã de domingo. Ele senta, segura a mão da menina e diz: ?Meu amorzinho, é hora de levantar?. E ela se levanta. Jesus está enfrentando a morte, o inimigo mais implacável e inexorável da raça humana, e o poder dele é tão grande que ele segura essa menina pela mão e gentilmente a traz para o mundo dos vivos. ?Meu amorzinho, levanta?. Com seus atos, Jesus está dizendo: ?Se eu estiver segurando sua mão, a morte nada mais é do que um sono?.
CAPÍTULO 7: A MANCHA
De acordo com as leis da época, quem tocasse em um animal ou ser humano morto, quem tivesse uma doença infecciosa de pele, como furúnculos, erupções cutâneas ou feridas, quem tivesse contato com mofo (em roupas, artigos domésticos ou na própria casa), quem tivesse qualquer tipo de fluxo que saísse do corpo ou quem comesse carne de animal considerado impuro era considerado ritualmente impuro, manchado, contaminado, imundo. Isso significava que a pessoa não poderia entrar no templo ? e, portanto, não poderia adorar a Deus junto com a comunidade. Tais limites tão rigorosos nos parecem severos demais, mas, se pensarmos um pouco a respeito, eles não parecerão tão estranhos assim. Ao longo dos séculos, as pessoas se abstinham de alimento durante períodos de oração. Por quê? É um recurso para que se desenvolva uma fome espiritual por Deus. Notamos também que pessoas de diferentes fés se ajoelham para orar. Orar ajoelhado não é um pouco desconfortável? Mas é um recurso para que se desenvolva uma atitude de humildade espiritual.
Quando vamos nos encontrar com alguém importante para nós ? algum encontro especial ou uma entrevista de emprego ?, tomamos banho, escovamos os dentes e nos penteamos com cuidado. O que estamos fazendo com isso? Ficando livres da sujeira, é claro. Ninguém quer comparecer a esses encontros com manchas de sujeira ou cheirando mal. As leis de limpeza ritual seguiam a mesma ideia. Se a pessoa não estivesse limpa em termos espiritual e moral, não poderia estar na presença de um Deus perfeito e santo.
Jesus não poderia estar mais de acordo com os líderes religiosos de sua época sobre o fato de que somos impuros diante de Deus, inadequados para estar na presença dele. Mas discordava deles quanto à fonte dessa impureza e quanto ao modo de tratá-la.
CAPÍTULO 8: A APROXIMAÇÃO
Jesus fora para as regiões de Tiro e Sidom e não queria que ninguém soubesse disso. O que estava se passando? Bem, Jesus gastara todo seu tempo ministrando em províncias judias, e isso atraiu a ele imensas multidões, o que o deixou exausto. Assim, Jesus saiu das províncias judias e foi para um território gentio, para poder descansar um pouco.
Todavia, essa estratégia não funcionou. Uma mulher ouve dizer que Jesus estava ali e dá um jeito de chegar até ele com ousadia. Embora ela fosse grega, de origem siro-fenícia, em função da proximidade do lugar com a Judeia, ela tinha conhecimento dos costumes judaicos. Ela sabia que não tinha credenciais religiosas, culturais nem morais para se aproximar de um rabi judeu ? ela era mulher, grega, de origem siro-fenícia e, portanto, uma gentia pagã, cuja filha estava possessa de um espírito impuro. Ela sabe que, de acordo com os padrões da época, era considerada de todos os modos uma pessoa impura e, portanto, não qualificada para se aproximar de qualquer judeu devoto, quem dirá de um rabi. Mas ela não se importa com isso. Ela entra na casa sem ser convidada, prostra-se aos pés de Jesus e começa a lhe suplicar que expulse o demônio de sua filha.
Você sabe por que ela tem esse arroubo de ousadia, não sabe? Existem os covardes, as pessoas comuns, os heróis e os pais. Os pais não se encaixam bem nesse espectro que vai da covardia à coragem, pois quando um filho corre perigo, são capazes de fazer o que for preciso para salvá-lo. E não importa se é uma pessoa tímida ou ousada ? a personalidade de um pai ou de uma mãe nessas horas é irrelevante. Nós nem pensamos duas vezes, apenas fazemos o que for preciso. Por isso, não é algo assim tão surpreendente o fato de essa mãe estar disposta a pressionar e superar todas as barreiras que lhe são impostas.
[?] e suplicava-lhe que expulsasse de sua filha o demônio. Jesus lhe respondeu: Deixa que primeiro os filhos se fartem, pois não é justo tomar o pão dos filhos e jogá-lo para os cachorrinhos (Mc 7.26,27).
À primeira vista, isso parece ser um insulto. Nossa sociedade ama cachorros, mas, na época do Novo Testamento, a maioria desses animais eram cachorros de rua ? ferozes, imundos, ou seja, desagradáveis de todas as formas possíveis e imagináveis. A sociedade daquela época não gostava de cães e chamar alguém assim era um insulto terrível. Nos tempos de Jesus, os judeus em geral chamavam os gentios de cães por eles serem ?impuros?. Então, o que Jesus disse à mulher era somente um insulto? Não, é uma parábola. O termo parábola quer dizer ?metáfora? ou ?semelhança?, e é isso que significa o que Jesus disse aqui. Um ponto-chave para entender a questão está na palavra pouco comum que Jesus usa para se referir aos cães. Ele usa a palavra no diminutivo, ?cachorrinhos?, o que na verdade significa filhotes. Lembre-se de que a mulher era mãe. Jesus está dizendo a ela: ?Você sabe como são as refeições em família: primeiro comem as crianças à mesa e depois comem seus animaizinhos de estimação. Não é certo quebrar essa ordem.
Suas palavras, então, não são o insulto que parecem ser. O que ele estava dizendo àquela mulher era: ?Por favor, entenda, temos uma ordem a seguir aqui. Irei primeiro a Israel e, depois, aos gentios (às outras nações)?.
Em outras palavras, ela responde assim: Sim, Senhor, mas os cachorrinhos também comem das migalhas que caem dessa mesa, e eu estou aqui em busca dessas migalhas. Jesus contou a ela uma parábola na qual ele lhe fornecia uma combinação de desafio e oferta, e ela a aceitou. A mulher respondeu ao desafio: ?Certo, eu compreendo. Não sou da nação de Israel, não adoro o Deus dos israelitas. Portanto, não tenho lugar a essa mesa. Eu aceito esse fato.?
Isso não é incrível? Ela não toma isso como uma ofensa, não exige seus direitos. Apenas diz simplesmente: ?Tudo bem. Posso não ter um lugar a essa mesa ? mas nela há comida suficiente para o mundo inteiro, e eu preciso da minha porção agora?.
Ela não está dizendo: ?Senhor, dê-me o que mereço com base na minha bondade?. Ela na verdade está dizendo: ?Dê-me aquilo que não mereço com base na sua bondade ? pois preciso disso agora?.
OBSERVAÇÃO DE JAMES EDWARD
Ela parece entender o propósito do Messias de Israel melhor do que o próprio povo de Israel. Sua determinação e persistência são um testemunho de sua confiança na suficiência e na abundância de Jesus: a provisão dele para os discípulos e para Israel será abundante o bastante para suprir alguém como ela. [?] Que ironia! Jesus procura desesperada desesperadamente ensinar os discípulos que escolhera ? e, no entanto, eles são lentos, não conseguem compreendê-lo; Jesus reluta até mesmo em falar com uma mulher pagã que por ali passa ? e depois de uma única sentença ela compreende a missão dele e recebe um inequívoco elogio de Jesus. [?] Como isso é possível? A resposta é que a mulher é a primeira pessoa no Evangelho de Marcos a ouvir e entender uma parábola de Jesus. [?] O fato de ela responder a Jesus ?dentro? da lógica da parábola, ou seja, nos mesmos termos pelos quais Jesus se dirigiu a ela, indica que ela é a primeira pessoa no Evangelho de Marcos a ouvir a palavra que Jesus tinha para ela.
O encontro dessa mulher com Jesus nos mostra que existem duas maneiras pelas quais falhamos em aceitar Jesus como nosso Salvador? Uma delas é sendo excessivamente orgulhoso, mostrando um complexo de superioridade ? e não aceitando seu desafio para nós. A outra, porém, é mostrando um complexo de inferioridade ? sendo excessivamente voltado para si mesmo a ponto de dizer: ?Sou tão horrível que Deus não pode me amar?. Ou seja, não aceitando a oferta de Deus.
JESUS E O HOMEM SURDO
Jesus faz uma série de coisas com o homem surdo: tira-o do meio da multidão, coloca-lhe os dedos nos ouvidos, toca-lhe a língua com sua própria saliva, olha para o céu, suspira e diz: Abre-te! Você pode dizer: ?Ora, Jesus está seguindo os rituais típicos de alguém que faz milagres?. Mas, na verdade, ele não está fazendo isso.
Jesus evidentemente não precisa fazer um ritual para invocar seu poder. Concluímos que Jesus faz tudo isso não porque ele precise, mas porque o homem enfermo precisa.
Jesus identifica-se profundamente com esse homem surdo. Todos esses gestos de tocar suas orelhas, sua boca ? tudo isso é uma linguagem de sinais. Jesus está dizendo: ?Vamos ver isso aqui; não tema, vou fazer algo a respeito disso; vamos agora olhar para Deus?. Ele entra no universo cognitivo daquele homem e usa termos ? em uma linguagem não verbal ? que o homem conseguia compreender. Observe como ele tira o homem do meio da multidão. Por que Jesus faz isso ? ele não queria que todos vissem? Ora, imagine-se no lugar desse homem, enquanto ele crescia. Ele sempre chamava a atenção. Por ser surdo, ele não conseguia falar direito. Apenas procure imaginar o modo como as pessoas gozaram dele sua vida inteira. Jesus sabia disso e se recusou a fazer dele o centro de um espetáculo. Ele estava se identificando emocionalmente com o homem surdo.
Marcos usa uma única palavra do grego, moglilalos. Essa palavra só é usada aqui e em Isaías 35.5, e em mais nenhuma outra passagem da Bíblia. Trata-se de uma palavra muito rara, e Marcos não teria razão de usá-la, a menos que quisesse estabelecer uma ligação entre o que está acontecendo aqui e o que acontece em Isaías 35. O profeta Isaías diz isso sobre o Messias: ?Sede fortes, não temais; o vosso Deus virá com vingança; sim, ele virá com divina recompensa e vos salvará. Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se desobstruirão. Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará de alegria (Is 35.4-6)?. Marcos está dizendo: ?Vocês estão vendo os olhos dos cegos serem abertos? Estão vendo os ouvidos dos surdos se desobstruírem e ouvindo a língua do mudo cantar de alegria?? Deus veio, exatamente como está prometido em Isaías 35, Deus veio para salvar vocês. Jesus Cristo é Deus que veio nos salvar. Jesus é Rei.
Há algo mais sobre o qual Marcos quer que seus leitores reflitam. Isaías diz que o Messias virá para nos salvar ?com vingança? com divina recompensa?. Mas Jesus não está castigando pessoas, não está usando sua espada. Ele não está tomando o poder; ele o está dando. Ele não está conquistando o mundo; ele o está servindo. Onde está a vingança divina? A resposta é que ele não veio para trazer a vingança divina, mas para recebê-la. Na cruz, Jesus se identificará conosco de maneira cabal. Na cruz, o Filho de Deus foi lançado fora, foi tirado da mesa sem uma migalha sequer, para que nós, que não éramos filhos de Deus, pudéssemos ser adotados e entrar para essa família.
CAPÍTULO 9: A VOLTA
O CAPÍTULO 8 do Evangelho de Marcos é de importância central. É o clímax do primeiro ato, no qual os discípulos finalmente começam a enxergar a verdadeira identidade daquele a quem vinham seguindo. Nele, Jesus diz duas coisas: Sou um Rei, mas um Rei que irá para a cruz e, se quiserem me seguir, devem ir para a cruz também.
Aqui, enfim, Pedro começa a saber a resposta da grande pergunta: ?Quem é Jesus?? Ele diz para Jesus: ?Tu és o Cristo.? Pedro usa uma palavra que significa literalmente ?o Ungido?. Os reis eram tradicionalmente ungidos com óleo, como uma espécie de coroação, mas a palavra Christos viera a ter o significado de O Ungido, o Messias, o Rei acima de todos os reis.
O REI IRIA SOFRER
Jesus diz que o Filho do homem deve sofrer. Nunca antes, até esse momento, alguém em Israel tinha associado sofrimento ao Messias. É evidente que existem muitas profecias no Antigo Testamento sobre um misterioso Servo do Senhor que sofre (por exemplo, as profecias de Isaías dos capítulos 43, 44 e 53), mas ninguém, antes de Jesus, havia associado esses textos à esperança do Messias. A noção de que o Messias deveria sofrer não fazia o menor sentido, pois se supunha que o Messias derrotaria o mal e a injustiça e faria tudo no mundo ficar em harmonia. Como ele poderia derrotar o mal por meio do sofrimento e da morte? Isso parecia ridículo, impossível.
É por isso que, no momento em que Jesus diz isso, Pedro ?começou a repreendê-lo?. Esse é o mesmo verbo usado em outras passagens quando Jesus repreende demônios. Significa que Pedro condena a atitude de Jesus com a linguagem mais forte possível.
O VERDADEIRO AMOR
No final, somos todos iguais, tateando em busca do verdadeiro amor, mas incapazes de dar esse amor a alguém em sua plenitude. O que precisamos é de alguém que nos ame e que não precise de nós para nada. De alguém que nos ame radicalmente, incondicionalmente, de forma vulnerável. Alguém que nos ame somente por nós mesmos. Se recebêssemos esse tipo de amor, isso nos deixaria tão seguros de nosso próprio valor, nos completaria de tal forma, que talvez pudéssemos ser capazes de começar a dar aos outros um amor como esse. Mas quem pode amar dessa forma, sem exigências em troca? Jesus.
O PERDÃO
Quando alguém lhe rouba uma oportunidade, a felicidade, a reputação, ou lhe toma algo que você jamais conseguirá ter de volta, isso gera uma noção de dívida. A justiça foi quebrada ? e essa pessoa lhe deve algo. Uma vez que se conscientize dessa dívida terá diante de você aquelas duas opções: cobrar a dívida ou perdoá-la.
Uma das opções é tentar fazer o devedor pagar pela dívida: você pode tentar destruir as oportunidades dele ou arruinar-lhe a reputação; pode torcer para que ele sofra ou fazer com que ele sofra. Mas há um grande problema nesse curso de ação. À medida que você faz seu devedor pagar por sua dívida, à medida que o faz sofrer por aquilo que ele lhe fez, você se torna como ele. Torna-se uma pessoa cada vez mais dura de coração, mais fria; torna-se como o transgressor. E o mal vence nesse caso. O que mais você poderia fazer? A alternativa é perdoar a dívida. Mas não é nada fácil perdoar. Quando o que você quer é nutrir pensamentos de vingança, quando anseia tanto por colocar em prática a sua vingança, mas se recusa a fazer isso em um esforço para perdoar, isso dói. Reprimir a vingança e perdoar é uma agonia. Por quê? Porque, em vez de fazer o devedor sofrer, pagar pelo que fez, você mesmo está absorvendo o custo da dívida. Não está tentando recuperar sua reputação destruindo a da pessoa que lhe causou prejuízo. Você a está perdoando, e isso tem um custo para você. É isso que o perdão representa. O verdadeiro perdão sempre envolve sofrimento.
Se tivermos consciência de que o perdão sempre envolve sofrimento para aquele que perdoa e que a única esperança de corrigir o mal feito vem da atitude de pagar o custo do sofrimento, então não deveria nos espantar quando Deus diz: ?O único modo que posso perdoar os pecados da raça humana é com o sofrimento ou vocês terão que pagar a pena pelo pecado ou eu terei?. O pecado sempre implica uma pena. Não se pode resolver a questão da culpa, a menos que alguém pague a pena.
O único modo que Deus tem de nos perdoar e de não nos julgar é indo para a cruz e arcando com a nossa pena. ?sofrer É necessário que eu sofra?, diz Jesus.
Os poderes corruptos deste mundo têm muitos recursos para aterrorizar as pessoas, sendo a morte o pior deles. Quando ficamos sabendo que o poder civil ou alguma outra esfera de poder é capaz de nos matar, ficamos com medo, e esse medo pode ser usado para nos controlar. Todavia, uma vez que Jesus morreu e ressuscitou dos mortos, se podemos encontrar um modo de nos aproximarmos de Jesus e nos unirmos a ele, perceberemos que a morte, a pior das coisas que podem nos acontecer, passa a ser a melhor de todas. Amorzinho, levante-se. A morte nos colocará nos braços de Deus e fará de nós tudo aquilo que sempre sonhamos ser. Quando a morte perde seu aguilhão, quando ela não mais tem poder sobre nós, por causa do que Cristo fez na cruz, então, viveremos uma vida de amor, e não de medo.
IDENTIDADE CRISTOCÊNTRICA
Jesus está dizendo que, uma vez que ele é um rei que tomou uma cruz, se alguém quiser vir após ele, deverá tomar sua própria cruz e segui-lo. Mas o que significa isso? O que significa perder a vida por causa do evangelho, para preservá-la?
O termo deliberadamente escolhido do grego nessa passagem é psyche, de onde vem a palavra psicologia. Ele denota nossa identidade, personalidade, individualidade ? aquilo que nos distingue. Jesus não disse que queria que perdêssemos nosso senso de identidade, nossa individualidade. Isso é o que ensina a filosofia oriental e, se Jesus quisesse ter dito isso, ele teria dito: ?Você deve abrir mão de sua individualidade para perdê-la?. Mas o que Jesus está dizendo é: ?Não construa sua identidade sobre o fato de conquistar coisas neste mundo?. Suas palavras precisas foram estas: ?Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida??
As culturas tradicionais diriam que não somos ninguém, a menos que conquistemos a respeitabilidade e o legado de uma família e filhos. Já as culturas individualistas são diferentes: elas nos dizem que não somos ninguém, a menos que conquistemos uma carreira que nos realize, que nos traga dinheiro, reputação e status. Contudo, apesar das diferenças entre culturas, todas dizem que a identidade se baseia em nossa ação, naquilo que conquistamos.
Mas Jesus diz que isso jamais funcionará. Mesmo que você ganhe o mundo inteiro, segundo ele, isso não será suficientemente grande ou esplendoroso a ponto de cobrir a mancha da inconsequência. Não importa quantas dessas coisas você ganhar, nunca será o bastante para lhe dar a certeza de quem você é. Se estiver construindo sua identidade com base no fato de que ?alguém me ama? ou de que ?tenho uma boa carreira?, e algo der errado com esse relacionamento ou emprego, você ficará sem chão. Sentirá como se não tivesse uma identidade.
Jesus diz: ?Não quero que você apenas troque uma identidade baseada na performance por outra; quero que encontre um caminho inteiramente novo. Quero que você abra mão da velha natureza, da velha identidade, e baseie sua identidade e a si mesmo em mim e no evangelho.? Gosto muito do fato de que ele diz ?em mim e no evangelho?, pois está nos lembrando de não fazermos disso uma abstração. Não basta simplesmente dizer: ?Entendi: não posso construir minha identidade com base na aprovação de meus pais, pois isso é algo sujeito a altos e baixos; não posso construir minha vida com base no sucesso profissional; também não posso construí-la com base em relacionamentos amorosos.
Jesus está dizendo: ?Não basta me conhecer apenas como um mestre ou um princípio abstrato; você precisa olhar para a minha vida. Eu fui para a cruz ? e nela perdi minha identidade, para que você pudesse ter uma.?
?Quanto mais conseguirmos deixar fora do caminho aquilo a que chamamos ?nós mesmos?, e deixarmos que Jesus tome conta de nós, mais verdadeiramente nos tornamos nós mesmos [?] nosso verdadeiro ser espera por nós em Cristo [?] Quanto mais resisto a ele e tento viver por mim mesmo, mais me deixarei dominar por minha própria hereditariedade, criação, contexto e por minhas paixões naturais. De fato, aquilo que com tanto orgulho chamo de ?mim mesmo? se torna meramente um ponto de convergência para uma sucessão de eventos aos quais jamais dei início e não posso deter. O que chamo de ?meus desejos? se torna nada mais do que os desejos produzidos pelo meu organismo ou incutidos em mim pelos pensamentos de outros seres humanos [?] Somente quando me volto para Cristo, quando me rendo à personalidade dele, é que finalmente começo a ter uma personalidade inteiramente minha [?] [A despeito disso], não se deve ir a Cristo por causa de [um novo ser]. Enquanto sua preocupação for apenas a sua própria personalidade você não irá a Cristo, em absoluto.?
ção for apenas a sua própria personalidade você não irá a Cristo, em absoluto.
CS Lewis em Cristianismo Puro é Simples
REINO DE PODER
Quando Jesus diz, ?Em verdade vos digo que, dentre os que estão aqui, há alguns que de modo algum provarão a morte até que vejam o reino de Deus chegando com poder? (Mc 9.1), o que ele quer dizer com isso? Alguns interpretaram isso com o sentido de que a geração atual não passaria antes que Jesus voltasse. Mas não é isso que ele está dizendo. Os primeiros cristãos prezavam essa passagem bem depois da morte das pessoas da geração de Jesus. Eles sabiam que Jesus queria dizer algo mais por meio dela. Eles entendiam que Jesus quis dizer que, embora o reino de Deus tivesse começado na fraqueza ? na cruz ?, não terminaria desse modo. Eles veriam o poder da ressurreição de Jesus, veriam a igreja se multiplicar e crescer em amor, serviço e influência no mundo.
?Entregue a si mesmo e encontrará seu verdadeiro ser. Perca sua vida e a salvará. Submeta à morte suas ambições e desejos favoritos, a cada dia, e, por fim, submeta-se à morte de seu próprio corpo. Submeta, com cada fibra do seu ser, e encontrará a vida eterna. Não retenha nada. Nada do que você não tiver entregado será realmente seu. Nada em você que não tiver morrido poderá algum dia ser ressuscitado. Busque a si mesmo e encontrará mais para frente somente ódio, solidão, desespero, ira, ruína e decadência. Mas busque a Cristo e você o encontrará, e com ele, receberá tudo o mais.?
CS Lewis
CAPÍTULO 10: A MONTANHA
Eu disse no início que, enquanto a primeira metade de Marcos se concentra em torno de quem Jesus é, a segunda metade se concentra em seu propósito ? no que ele veio fazer. Na primeira metade, vemos que ele é tanto Deus quanto homem, o Rei eterno. Ele é perdão, refrigério, poder, amor sem limites. Contudo, a essa altura do Evangelho de Marcos, os leitores se perguntam sobre o que Jesus veio fazer e como ele o faria.
Séculos antes desse episódio, segundo o livro veterotestamentário de Êxodo, Deus apareceu no monte Sinai em uma nuvem. A voz de Deus saía dessa nuvem, e todos ficaram atemorizados. Moisés subiu ao topo do monte e implorou para ver a glória de Deus: ?Rogo-te que me mostres tua glória, tua grandeza infinita e beleza indescritível?. E Deus respondeu: ?Não poderás ver a minha face, porque homem nenhum pode ver a minha face e viver. O SENHOR prosseguiu: Aqui está um lugar próximo de mim; ficarás aqui, sobre a rocha. Quando a minha glória passar, eu te colocarei numa fenda da rocha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu tenha passado.
Moisés não podia ver a glória de Deus face a face. Mas o simples fato de ter estado suficientemente próximo a ela fazia sua face resplandecer com o reflexo da glória de Deus.
Agora, séculos depois, no Evangelho de Marcos, estamos novamente no topo de outro monte onde está a glória de Deus. A extrema brancura e resplandecência fazem com que as roupas de Jesus fiquem ?como nenhum lavandeiro na terra poderia branqueá-las?. Temos um monte, uma voz que sai da nuvem ? e até mesmo a presença de Moisés. Será que temos de novo o episódio do monte Sinai? Não, pois notamos uma mudança, uma guinada de cento e oitenta graus. Moisés refletia a glória de Deus como a lua reflete a luz do sol. Mas Jesus é a fonte que produz essa incomparável glória de Deus; a glória emana dele. Jesus não aponta para a glória de Deus como Elias, Moisés ou qualquer outro profeta tinha feito; Jesus é a glória de Deus encarnada.
Nessa passagem de Marcos, também acontece outra coisa que jamais aconteceu no monte Sinai: Pedro, Tiago e João ficam na presença de Deus, contudo não morrem. Como pode ser? ?De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus.? Essa é a maneira de Marcos dizer: Moisés se foi, Elias se foi, e Jesus é a ponte que une a distância entre Deus e o ser humano. Jesus é capaz de dar à humanidade algo que nem Moisés nem Elias puderam, que ninguém jamais pode dar. Por meio de Jesus, podemos cruzar a distância que nos separa da própria essência da realidade, podemos entrar no compasso da dança. Jesus é o templo e o tabernáculo que põe fim a todos os templos e tabernáculos, pois ele é o sacrifício que põe fim a todos os sacrifícios, o supremo sacerdote que mostra o caminho a todos os sacerdotes.
CS LEWIS EM PESO DA GLORIA
A sensação de que neste universo somos tratados como estrangeiros, o anseio por ser reconhecidos, encontrar alguma resposta, cruzar esse abismo que se escancara entre nós e a realidade, é parte de nosso inconsolável segredo. E, por certo, a partir desse ponponto de vista, a promessa da glória torna-se altamente relevante para nosso mais profundo desejo. Pois a glória significa boa [harmonia] com Deus, aceitação por Deus, resposta, reconhecimento e ser bem recebido ao coração de todas as coisas. A porta à qual batemos por toda nossa vida finalmente se abrirá [?] e, então, essa nostalgia que sentimos na vida, esse anseio por nos unirmos de novo a algo no universo do qual agora nos sentimos afastados, para passar para o lado de dentro de uma porta que sempre vimos pelo lado de fora, não é mera fantasia neurótica e sim o sinal mais verídico de nossa real situação [?] No momento estamos do lado de fora do mundo, do lado errado da porta [?] mas todas as páginas do Novo Testamento sussurram o rumor de que não será sempre assim. Algum dia, se Deus quiser, iremos entrar.
ELIAS, JOÃO BATISTA E JESUS
O livro veterotestamentário de Malaquias profetizou que Elias voltaria antes do grande Dia do Senhor, quando Deus surgiria e tornaria certas todas as coisas. Assim, os discípulos estavam dizendo: ?Espera aí, acabamos de ver Elias lá em cima do monte. O Dia do Senhor deve estar próximo! Por que, então, essa conversa sobre morte? Elias já veio.? Jesus os rebateu: ?Digo-vos, porém, que Elias já veio, e fizeram-lhe tudo quanto quiseram, segundo está escrito a seu respeito.? O que Jesus está dizendo é: ?Esse Elias a que o profeta se referiu foi João Batista, e ele já sofreu e morreu. Elias já veio e já se foi. ? E Jesus repete que ?está escrito que o Filho do homem deve sofrer muito e ser desprezado?. Assim como a vinda de Elias anunciara a vinda do Senhor, a morte de Elias (a decapitação de João Batista a mando de Herodes) anunciava a morte do Senhor.
Uma coisa é saber que o glorioso Deus criador ama você, preocupa-se com você e cuida de você, mas outra coisa é sentir, experimentar isso. O que quer que a vida lhe trouxer, você precisará dessas experiências antecipatórias para fortalecê-lo.
A transfiguração não é um truque milagroso para convencer os discípulos da divindade de Jesus. É uma experiência de adoração coletiva a qual será necessária para enfrentar aquilo que os espera pela frente.
ME AJUDA A CRER
Ao descer do monte havia uma grande discussão estava se passando entre os escribas e uma grande multidão, de um lado, e, do outro, os discípulos que não tinham subido com Jesus ao monte. Eles estavam tentando exorcizar um demônio, mas não estava funcionando. O mal se fazia presente, e todos estavam confusos.
Ver Mc 9:19-29
O menino da história está possuído por um demônio que o deixa surdo e mudo, provocando-lhe ainda convulsões. Trata-se de uma condição física e espiritual opressiva que não só faz do menino um inútil, mas também frustra a vida de todos à sua volta ? de seu pai, dos discípulos e até mesmo dos escribas.
Os discípulos estavam tentando exorcizar um demônio. Mas estavam tentando fazê-lo sem orar. Quão arrogantes e sem noção eles eram acerca de sua inadequação para lidar com o mal e o sofrimento no mundo. Eles tentaram aplicar ao menino um exorcismo sem oração pelo mesmo motivo que não podiam entender por que Jesus tinha que morrer ? eles não conseguiam ver quanto eram fracos e arrogantes. Subestimavam o poder do mal no mundo e em si mesmos.
O pai do menino implora a Jesus: ?Por favor, nos ajude; tenha compaixão do meu filho?. Ao que lhe disse Jesus: ?Tudo é possível ao que crê?. Em outras palavras, Jesus disse que podia curá-lo se o pai tivesse fé. E o pai do menino responde: ?Eu creio! Ajuda-me na minha incredulidade?. Ou seja, ele admitiu que estava tentando, mas estava repleto de dúvidas. Então, Jesus cura o menino. Uma excelente notícia! Por meio de Jesus, não precisamos ser perfeitamente justos, precisamos apenas reconhecer nossa impotência com arrependimento, para ter acesso à presença de Deus.
Quando buscar a Deus com um coração arrependido, reconhecendo sua impotência, você o adorará. E, a cada vez que se sentir envolvido por seu abraço, sua alma ganhará um pouco mais de brilho por refletir a glória dele, e você se sentirá mais preparado para o que a vida tiver a lhe proporcionar.
CAPÍTULO 11: A ARMADILHA
EM UMA ENTREVISTA, Andrew Walls,