Luis 20/08/2017
Para iluminar a escuridão
Há uma pequena fábula, muito popular no YouTube, que compara a depressão a um enorme cão negro que, faça chuva ou sol, acompanha fielmente seu portador, minando suas energias em cada atividade cotidiana. Pode por lá permanecer décadas, agressivo, rosnando e mostrando os dentes ou em suspeita hibernação, como vulcão, falsamente extinto. O curioso é que tal fera, muitas vezes, mostra-se invisível aos outros e talvez essa seja a maior contribuição de “O Demônio do Meio Dia” (Companhia das letras, 2014) : jogar luz sobre os becos escuros onde estão os que sofrem dos “males da alma”.
Andrew Solomon é jornalista e, partindo de sua própria experiência com a doença, consolidou um verdadeiro tratado sobre o assunto, pontuadas por diversos estudos de caso, mostrando as diferentes faces da depressão, dando voz tanto a pacientes, quanto a técnicos e especialistas do assunto. Todo esse imenso material (quase 600 páginas) embaladas em uma prosa elegante e de rara sensibilidade, herdeira legítima da melhor tradição do new journalism americano, não por acaso, o primeiro grande “rascunho” da obra foi publicado na New Yorker, bíblia do jornalismo literário.
O livro nos surpreende ao quebrar mitos que permeiam a discussão rala que envolve o tema, notadamente refletido nos muitos manuais de auto ajuda disponíveis no mercado. A trajetória de autor, que teve a sua primeira grande manifestação de depressão em um momento de plenitude profissional, quando lançava seu elogiado romance de estreia, ajuda a quebrar o paradigma que estabelece uma relação de causa e efeito entre surtos depressivos e episódios de frustrações e perdas, por sinal, situações que estão presentes na vida de todos, mesmo daqueles notadamente saudáveis. Ou seja, para quem tem a doença, até os momentos de sucesso podem desencadear crises.
Um outro aspecto interessante, entre os muitos abordados ao longo dos doze capítulos, é o que estabelece uma nova interpretação da distribuição social da depressão. Para muitos, trata-se de uma patologia de “rico”, impressão reforçada sobretudo pela crueldade que estabelece um funil no acesso aos recursos que permitem o diagnóstico e o tratamento adequados. “O Demônio do meio dia” nos mostra que a incidência se dá em proporções semelhantes em todas as classes, cabendo às mais abastadas, a facilidade na utilização dos recursos, consulta com psiquiatras e obtenção de medicamentos, que auxiliam a manter sob controle o ‘cão raivoso”, minimizando os impactos sobre suas vidas. Do lado dos pobres, a óbvia situação de privação ou limitação de tratamento, os deixam em situação de deprimidos crônicos. Até aí, não é difícil de intuir. A originalidade da discussão proposta por Solomon nesse tópico, está na pulverização da lógica de que a pobreza leva à depressão, quando, na verdade, tudo indica ser o contrário : a depressão, diagnosticada ou não, levando à pobreza, já que no auge de suas crises, o paciente é assolado por um estado intenso de apatia, o que arruína a sua produtividade e praticamente cessa suas chances de ascensão, reforçando um círculo vicioso que não raro se perpetua por gerações, lembrando que não é desprezível o traço hereditário da doença.
Baseado na minha experiência de quase 14 anos convivendo com pacientes em tratamento, posso afirmar que, embora existam fortes especificidades locais, principalmente no que concerne às questões que envolvem o nosso sistema público de saúde, os relatos e as reflexões propostas pelo autor americano são lições fundamentais, sobretudo para aqueles que lutam na trincheira da humanização das políticas aplicadas à aos processos de saúde mental.
Por fim, talvez a mensagem que resuma obra tão monumental é a de que o contrário da depressão não é necessariamente a felicidade, afinal, as tristezas fazem parte da nossa trajetória. O contrário da depressão é a vida. Clara e bela como o sol ao meio dia, sem estar ofuscado por nuvens cinzentas ou demônios.