Malle 18/02/2024
Temor & Arrogância
Talvez o livro de fantasia mais verdadeiramente britânico que eu já li na vida, tanto nos pontos fortes, quanto fracos.
Quando lemos uma fantasia, há de esperarmos algumas coisas: criaturas mágicas espalhadas pelo mundo de uma forma ou outra; magos e artefatos que podem governar uma trama inteira; uma aventura épica etc. De certo modo, Jonathan Strange & Mr. Norrell (irei me referir a JN&MN a partir daqui) preenche todas as lacunas, mas não da forma que um leitor corriqueiro de fantasia pode se esperar. Dividido em três partes ? cada um focado em um personagem diferente como palco principal ? e narrado em terceira pessoa, esta trama a princípio pitoresca se transforma em algo mais, algo tão tremendamente extenso e vivo que é necessário notas de rodapé sobre eventos fictícios do próprio universo.
Centrada primeiramente em seus personagens, com a narrativa em segundo plano pela maior porção do livro até sua terceira parte, acompanhamos a ascensão social e política dos dois primeiros magos ingleses a surgirem a mais de 400 anos. Aqui, a magia se tornou objeto de teóricos e estudos; ninguém mais a pratica. Seres mágicos são lendas. Reis que outrora foram adorados agora não deixam de ser uma memória cultural antiga, algumas vezes contestada. É um mundo onde tudo parece ser corriqueiro, normal, dentro do esperado; a magia é discutida somente por homens cavalheiros, sendo objeto de medo ou espanto por todos as outras pessoas. Susanna Clarke criou um terreno fértil, tanto fictício como histórico, onde é necessário as pessoas certas para alavancar o fantástico e iniciar a trama.
Eis que somos introduzidos a Gilbert Norrell, um homem de uma inteligência e conhecimentos tão profundos do qual o mesmo se perde. Um personagem complexo e cuidadosamente estruturado, ele por várias vezes pode se tornar um quase-antagonista da trama, onde suas ações, apesar de previsíveis ? o que considero como positivo, como demonstração de como nos tornamos íntimos dos protagonistas ? porém condenáveis. Ele é um lado da moeda: o conservadorismo, a tradição, a ordem e o temor. Nunca consegui odiá-lo durante o livro, por mais mesquinho que seja. Se trata da incorporação da velha escola, que ao se ver como a única referência viva de magia, resolve molda-la ao seu ideal.
Então entra seu contraponto teórico, prático e pessoal. Jonathan Strange é caótico, flexível, liberal e arrogante. Dono de uma rapidez de aprendizado incrível e tão inteligente quanto Norrell, é somente natural que ele se torne discípulo do outro. Ele é um reflexo distorcido de Norrell, da mesma forma que Norrell é dele; ao mesmo tempo que se completam, são incompatíveis. Vemos como nascem duas escolas de pensamento, como doutrinas são criadas, e de forma bem fiel ao mundo real. A narrativa é focada no desenvolvimento desses personagens de uma forma tão intensa e precisa que pode, com certeza, deixar a leitura difícil. Acompanhamos a descrição de todas as camadas que veem a construir os dois magos da Inglaterra, por vezes pesarosamente, e um leitor que esteja esperando ação e aventura se verá ficando entediado, pois não é esse o propósito principal das duas primeiras partes.
O conflito principal ocorre de forma natural e bem desenvolvido, coerente dentro do universo. Sua resolução, na terceira parte, que é de longe a parte mais recheada de acontecimentos e o verdadeiro cair das peças enfileiradas, é extremamente satisfatório. JN&MN consegue, mesmo com 824 páginas, não deixar pontas soltas (e as que estão soltas, são claramente propositais). Se isso não é um testamento da maestria do qual Susanna Clarke planejou este livro, eu não sei o que é então.
Recomendo sim para os amantes de fantasia, desde que tenham uns bons dias para ler. É uma leitura demorada, por vezes difícil por ser mais prolixa, mas tremendamente recompensadora.