MayLestat 24/12/2015
Surreal, pesado e também realista
É um daqueles livros com narrativa complicada de digerir, dependendo do leitor. Pense em um livro que te tire seriamente da zona de conforto e... Tcharam, aí está. Fiquei metade da leitura encarando um enredo perturbador e trágico. E de perturbador já basta a realidade. Quando a realidade dá as caras na ficção... Não espere romantismo, apesar da tentativa falha de romantizar da autora. Ela de alguma forma tentou construir uma conexão entre eles, uma conexão perigosa e destrutiva. O protagonista não é um poço de amabilidade ou qualquer outra coisa do gênero. A personagem Olivia ou "Livvie" se ilude durante seu cativeiro, imputando a Caleb atitudes de carinho. Ela fica atordoada com a volatilidade desse homem. Mas na maior parte prevalece o caráter inescrupuloso.
Não recomendo para quem planeja ler uma história leve, descomplicada, que não seja nem muito densa nem muito chocante. Porque, sim, contém cenas bastante descritivas e violência gratuita (que não chega a um ponto extremo, mas ainda assim podendo causar desconforto). Há livros que detalham a fundo cenas de tortura, violência sexual e sadismo, e esse não chega a tanto. Mas é fácil se envolver, imaginar o terror que a protagonista sente, é fácil pensar que isso realmente acontece em algum lugar do mundo real (o caso da austríaca Natascha Kampusch tá aí para provar e tem certas semelhanças).
Caleb é um homem com um propósito em mente: vingança. Ele foi sequestrado ainda jovem, levado longe da família (não se sabe a origem dele) e vendido como escravo por um mafioso. Durante doze anos, ele se infiltrou no mundo da escravidão sexual em busca de uma pessoa específica. Finalmente, há pistas do responsável por seu antigo sofrimento. Se Caleb quiser ter êxito num plano de ataque, ele deve se tornar a mesma coisa que abomina e raptar uma garota bonita a fim de treiná-la para ser tudo o que ele próprio já foi um dia. Até que um dia ele encontra uma menina por acaso e vê nela um alvo perfeito.
Olivia Ruiz, 18 anos, despertou em um lugar estranho. De olhos vendados e amarrada, ela apenas tinha uma voz desconhecida para recebê-la, sem ter ideia de que estava prestes a entrar em um pesadelo. O dono da voz é Caleb, que ordena que o chame de "Mestre". Olivia é ingênua, sonhadora e ignorante dessa realidade suja que Caleb conhece bem. Embora ela esteja assustada com o homem misterioso, sádico e arrogante que é seu algoz, também está sentindo uma forte atração por ele.
Eu fui assaltada por diversos sentimentos - desde raiva, pena, repulsa e também um sentimento de negação: houve momentos em que não aceitava que ele chegasse de um extremo a outro com ela. Daí passei a odiar esse cara num piscar de olhos. Caleb sofreu quando menino, foi vítima de abusos e vítima de um destino que não podia controlar, sendo forçado a aceitar o que foi imposto a ele. Tentei ver o lado dele. Só que aí há um problema: de jeito nenhum justifica fazer o mesmo com outra pessoa, infligir dor, degradar ou torturar psicologicamente.
A autora faz uma viagem ao passado de Caleb, cavando minuciosamente o trauma do horror sexual que foi o gatilho para torná-lo quem ele é como pessoa. E foi triste aquilo. Muito. Abuso infantil é um tema monstruoso que me deprime demais e acabo com uma sensação ruim na boca do estômago. E aqui fica claro que a marca é tão profunda que alguém é capaz de conhecer somente aquilo, ser uma casca vazia com as lembranças dolorosas e o auto-desprezo, ter a saúde psicológica ferrada. Não sei se com isso a autora tentou amenizar ou justificar as ações dele com a pobre garota, além de apresentar toda uma vida absorvendo a crueldade e decadência, formando assim o homem chamado Caleb. Caleb, que desde cedo teve a infância e adolescência roubadas, sente repugnância por esse submundo do sexo, mas mesmo assim tem sangue frio o suficiente para fazer seus "negócios". Ele não tem mais nada a perder e vai de cabeça, mesmo que dê a entender que tem algum resquício de compaixão pela vítima que ele planeja moldar.
Olivia é obrigada a se submeter a tudo, a fazer o que Caleb exige e suportar as humilhações, consciente de que ele é capaz de lhe causar dor e castigá-la por desobedecer. Sinceramente, esse tipo de coisa me deixa puta, fico muito mexida. Isso me atinge. Caleb, implacável e obstinado em seus desejos, não hesita e faz pedacinhos de sua aprendiz, fazendo-a sentir medo, confusão, dependência - e é claro, uma faísca de afeição. Obviamente acaba desenvolvendo um laço meio bizarro com o sequestrador, uma carência quase ingênua. Ela se sente irremediavelmente ligada a aquele homem frio e desprovido de emoções que a levou ao pior cenário possível. Aí começa a dúvida: é paixão/amor ou a famosa Síndrome de Estocolmo? Na minha opinião, ela foi afetada pela segunda alternativa. Não tem cabimento perdoar porque supostamente está apaixonada e no outro livro pode ficar com aquele ar de amor bandido. Ela se apega a ele de uma maneira que não é saudável, dadas as circunstâncias. E o perigo reside aí.
Sem dúvida nenhuma Caleb é um criminoso, um cara amargurado por seu passado desolador, que infelizmente se deixou levar pelo ódio e vingança. Ele usa Olivia como um instrumento para atingir um objetivo e foda-se os estragos. No início do segundo livro vemos o que resultou de seus "ensinamentos" a Olivia, que se tortura mentalmente devido a esse sentimento passional. E esse segundo livro é muito mais dramático que o primeiro.
Se for ler, leia sabendo que vai dar de cara com um romance distorcido, doentio e improvável. Não tem nada de bonito ou cor-de-rosa, é cru, brutal e desalentador. Pior é saber que existe gente que curte isso (estupro/tortura/violência) ou gente que acha que porque há as palavras "amor" e "atração" no meio então está tudo bem, podemos relevar o resto. Fico imaginando se a história fosse real, se Livvie fosse uma vítima relatando tudo o que sofreu... Assim como várias outras pessoas que vivenciaram e sobreviveram a experiências traumáticas, algumas com anos de cativeiro. A vida real é trocentas vezes mais complicada que uma mera história colocada num papel.