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Tauana Mariana 05/02/2012

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Tela Total: mito-ironias do virtual e da imagem
Jean Baudrillard

Introdução – Jean Baudrillard ou o niilismo irônico

Tudo desapareceu. 7

Conhecimento e verdade parecem evoluir em direções opostas. Quanto maior o conhecimento, bem ilustrado na atualidade pela revolução da informática, menor a compreensão da existência. 7-8

À sombra do iluminismo quase defunto, Baudrillard ironiza, ri, desconcerta, relativiza, zomba e estraga os esquemas explicativos do prêt-à-porter teórico. 8

Conotativo por excelência, o discurso baudrillardiano explora o grau superior da virtualidade. A realidade resume-se a um índice, um vetor, um ponto de partida para o sonho; feroz ironia do homem que se recusa a fazer o jogo da lógica binária. 9

Tela Total reúne [...] a íntegra dos artigos e ensaios publicados por Baudrillard, no diário parisiense Libération, entre 1993 e 1997. 9

[...] os 25 artigos figuram como verdadeiras lições (cursos) sobre a era da imagem, do virtual, da extinção das “verdades” ideológicas, da crise dos paradigmas modernos etc. 9

Jean Baudrillard, em seu delírio filosófico iconoclasta, aponta para a entrada na era da irrealidade, estágio viral da circulação sígnica, no qual “o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios, sem referencia ao quer que seja, por pura contigüidade”. Não é apenas a referência do signo que se perde, mas também a capacidade última de decifração do objeto pelas ciências. 10

Nada de piedade de Sarajevo

Pôde-se ver assim, não faz muito tempo, Pierre Boudieu e o abade Pierre se oferecem em holocausto televisual, intercambiando a linguagem patética e a metalinguagem sociológica da miséria. 13

“Na atualidade é tacitamente impossível, nos programas de informação, mostrar, na televisão, outros espetáculos que não o do sofrimento” (Daniel Schneidermann). 13

Por toda parte, a infelicidade, a miséria, o sofrimento dos outros tornaram-se a matéria-prima e a gênese. 14

Os bósnios sabem disso. Sabem que estão condenados pela ordem “democrática” internacional, e não por qualquer vestígio ou excrescência monstruosa chamada fascismo. Sabem que estão fadados à exterminação, a ser relegados, ou à exclusão como todos os elementos heterogêneos e refratários do mundo – sem apelação, porque, apesar de poder desagradar a má consciência hipócrita dos democratas e humanitários ocidentais, essa é a vida inexorável do progresso. 16

Alguns dos habitantes de Saravejo, na tela da Arte, tinham o ar de estar sem ilusão e sem esperança, mas não o ar de mártires potenciais, bem ao contrário. Possuíam por eles a própria infelicidade objetiva; mas a verdadeira miséria, a dos falsos apóstolos e dos mártires voluntários, estava do outro lado. Ora, como se disse com muita justiça: “O martírio voluntário não será tomado em consideração no além”. 16

A impotência do virtual

Estamos apenas na aurora do processo, mas os dejetos e os desertos já crescem muito mais rápido do que a própria informática. Os dois universos, mesmo literalmente separados entre eles, são igualmente exponenciais. Tal distorção não cria, porém, nova situação política de verdadeira crise, pois a memória apaga-se ao mesmo tempo que o real. Ela é apenas virtualmente catastrófica. 18

[...] guardadas todas as proporções, a esfera da informação [...] corre o risco, nas perspectiva do desenvolvimento infinito de conexão universal de todas as redes que nos prometem, de conhecer uma reversão brutal do mesmo gênero. 18

Essa eventualidade não é mais a da distorção entre uma esfera ultrassofisticada, ultraconcentrada e o resto do mundo desertificado (o quarto mundo informático), mas uma catástrofe intrínseca ao universo virtual de ponta, implosão por ultrapassagem da massa crítica. 19

Há um precedente com o social: o patamar da massa social crítica já está amplamente ultrapassado com a expansão populacional, das redes de controle, de socialização, de comunicação, de interatividade, com a extrapolação do social-total – provocando desde agora a implosão da esfera real do social e de seu conceito. 19

Talvez, no entanto, por trás desse otimismo tecnológico delirante, por trás desse encantamento messiânico do virtual, sonhamos justamente com o limite crítico e com essa inversão de fase da esfera da informação – na impossibilidade de viver esse acontecimento considerável, essa implosão geral em nível do universo, teremos o gozo experimental em nível de micromodelo. 19

[...] resta uma hipótese alternativa: trata-se do quadro que nos apresentam da potência das tecnologias do virtual, da promoção irresistível da realidade virtual até a potência incontrolável dos novos donos do mundo [...] que são os senhores da Microsoft e do telecapitalismo; esse quadro depende fortemente da intoxicação midiática, repercutindo a autointoxicação desses meios (assim todo o processo se alimente em espiral). 19

[...] feudalismo tecnológico que concentraria em suas mãos toda espécie de poder real e então só resta desaparecer, pois nós também já estamos [...]. 20

A potência do “virtual” nada mais é do que virtual. Por isso, aliás, pode intensificar-se de maneira alucinante e, sempre mais longe do mundo dito “real”, perder ela mesma todo princípio de realidade. 20

Fatalidade do virtual: não poderia haver estratégia do virtual pois, doravante, só há estratégia virtual. 20

Servilização ocidental

[...] e a designação absolutamente platônica dos carrascos enquanto carrascos não implica de jeito nenhum reconhecimento das vítimas como vítimas. 21

[...] roteiro usado com Saddan Hussein: nós o combatemos com força, amplitude midiática e tecnológica – ele era e continua a ser nosso aliado objetivo. 23

Por toda parte onde sobrevive, onde persiste alguma singularidade, alguma minoria, algum idioma específico, alguma paixão ou crença irredutível. E sobretudo alguma visão de mundo antagônica, é preciso impor uma ordem indiferente – tão indiferente quanto somos em relação aos nossos próprios valores. Distribuímos generosamente o direito à indiferença, mas, em segredo, e desta vez de modo inexorável, trabalhamos para construir um mundo exangue e indiferenciado. 24

Quando o Ocidente toma o lugar do morto

A impotência militar em reagir à agressão sérvia equivale à impossibilidade de colocar em risco a vida de um só soldado ocidental. 25

Essa paralisia militar nada tem de surpreendente. Liga-se a paralisia mental do mundo civilizado. 25

O indivíduo, que produzimos e glorificamos, pela preocupação absoluta que tem consigo mesmo, e protegemos, na sua impotência, com toda a cobertura política dos direitos do homem, é o último homem do qual falava Nietzsche. Usuário final de si mesmo e de sua própria vida, indivíduo terminal, sem verdadeira esperança de descendência nem de transcendência. 26

[...] esse indivíduo marca o fim do ciclo e só lhe resta tentar, desesperadamente, sobreviver, especializando-se, fractalizando-se, pluralizando-se, tornando-se sua própria criatura e se próprio clone. Esse último homem não pode mais, portanto, ser sacrificado, justamente por ser o último. 26
Quase acertamos o golpe dos suíços, cuja astúcia secular consistiu em fornecer mercenários à Europa inteira e de ficar assim livres das guerras. É o que fazem hoje todos os países ricos, fornecendo armas ao mundo inteiro e conseguindo assim exilar, senão a violência, ao menos a guerra de seus territórios. Mas nada está feito: justo onde esperamos acossar a morte, ela reaparece através de todas as telas de proteção e até nos confins últimos da nossa cultura. 27

A grande faxina

A purificação é a atividade primordial deste fim de século, do qual três quartos serviram, antes de tudo, à acumulação de males, de violência, de corrupção e de culpabilidade. 29

Cada político, todo homem em posição de poder, é passível hoje de virtual inculpação e deve, como o dinheiro sujo, ser lavado. 29

Nem todo mundo pode inocentar-se suicidando-se como Pierre Bérégovoy, absolvendo, ao mesmo tempo, toda a classe política (a política tornada profissão nobre, pois se pode morrer nela), mas lhe dando também um presente envenenado, ao sublinhar a miséria e a covardia dos que, submetidos à mesma impotência e à mesma desonra, isto é, à mesmas razões de desaparecimento, evitaram fazê-lo. 30

Os meios de comunicação de massa e a classe política pagarão caro – já pagam a letra hipotecada, emitida sobre o nosso a valer imaginário, perdendo todo o crédito e toda credibilidade. 31

E a imoralidade dos motoristas não é nada em comparação com a antecipação cínica dos políticos, dos iniciados, dos experts financeiros, dos manipuladores de todo tipo em relação ao grande perdão eleitoral. 32

A democracia, depois de ter estancado as suas hemorragias, seu fluxo menstrual, a golpes de escândalos, regenera-se no coito eleitoral. 32

Seria preciso expandir e criar a carteira existencial com pontos. Cada infração, delito ou conduta imoral determinaria a retirada de pontos de existência – o esgotamento dos pontos implicaria a retirada da permissão de existir. Assim, as vias de existência ficaram menos engarrafadas, uma vez liberadas de todos os que não sabem se conduzir. 32-33

Às lágrimas, cidadãos!

A democracia não foge à regra segundo a qual [...]. Os sistemas, como os indivíduos, tiram a sua força dos vícios. 35

Ora, o político, tal qual o conhecemos, sacrificou a própria cena. Ao integrar todo mundo como figurante num grande ímpeto sentimental e demagógico de participação, matou a distância, regra fundamental do jogo. A lei do número substituiu a regra do jogo. Fim de teatro, fim da representação política. 35

O arbitrário do príncipe vem do fato que condensa em si todo o arbitrário esparso e difuso na sociedade, de tal maneira que esta é liberada. Se o arbitrário não está concentrado no alto, encontra-se disseminado na sociedade – assim é no Estado democrático, onde o arbitrário é difuso e endêmico, com os mesmos efeitos perversos da estrutura imperial quando esta se desagrega. 37

Não pretendem mais sequer representar; pretendem apagar-se para que todo mundo se exprima – doença senil consistindo em desembaraçar-se piedosamente da palavra e do poder para atribuí-los a todo mundo. 37

O exercício do poder sempre implicou o risco de morte. É o preço a pagar para que a vida pública não caia na indiferença total. 37-38

Poderíamos mesmo adiantar que a tarefa dos políticos hoje é digerir o cadáver do político e render-lhe graça, pois, tal como os sarcófagos vivos, eles nos protegem da podridão da morte, que, caso contrário, invadiria a sociedade inteira. 38



Os hilotas e as elites

Vivemos numa realidade política perfeitamente dissociada. 39

Ambas, afastando-se uma da outra à velocidade com V, parecem mais ou menos destinadas a perecer ou a desagregar-se cada uma em seu canto – sob prefusão graças ao cordão umbilical da mídia e das sondagens. A virtualidade, no sentido pelo qual a vontade política só opera através das telas mentais das televisões e da intermediação das sondagens, transformou a função e a representação politicas em vestígios quase inúteis. Nenhuma dialética, mesmo conflitual, mantém mais os dois polos em interação. 39

[...] a sociedade real desinteressa-se da classe política, sem deixar de desfrutar o espetáculo que esta proporciona. A mídia serve enfim para alguma coisa e a “sociedade do espetáculo” tira todo o seu sentido dessa feroz ironia: as massas concedendo-se o espetáculo dos disfuncionamentos da representação através dos riscos da corrupção da classe política. A esta nada mais resta a não ser autossacrificar-se para assegurar o espetáculo necessário ao prazer do povo. 40

[...] filósofos com lábios de cera. 40

Mitterrand, de resto, deve ser felicitado por ter cumprido boa parte do trabalho: ter garantido, graças a uma espécie de varredura póstuma, a profunda corrupção do sistema político, ter mistificado e varrido toda a esquerda divinal. 40-41

Quem falou de imaginação no poder? Nunca houve imaginação no poder. 41

Tal qual se esboça, a Europa é de qualquer modo um modelo de simulação projetado em plena desertificação social – realidade virtual obrigatória, a vestir como um conjunto digital (já nos tinham feito engolir a guerra do Golfo como uma guerra in vácuo, a vestir também como realidade virtual). 41-42

No fundo, tudo se passa como se as massas “cegas” tivessem uma visão mais sutil do que os intelectuais “esclarecidos”: ou seja, a consciência de que o poder é um lugar vazio, corrompido, sem esperança e que se deve colocar nele logicamente homens com o mesmo perfil – vazios, grotescos, histriões, charlatões – encarnando a situação. Berlusconi, por exemplo... 42-43

Estamos presos entre dois integrismos: o populista (ou islâmico e fundamentalista) e o liberal, elitista, do universal e da democracia forçada. 43

A informação no estágio meteorológico

Lançada a informação, enquanto não for desmentida, será verossímil. E, salvo acidente favorável, nunca sofrerá desmentido em tempo real; restará, portanto, credível. Mesmo desmentida, não será nunca mais falsa, porque foi credível. Contrariamente à verdade, a credibilidade não tem limites, não se refuta, pois é virtual. 45

O espaço entre o verdadeiro e o falso não é mais um espaço de relação, mas um espaço de distribuição aleatória. 45

O princípio de incerteza não depende somente da física, situa-se no coração de todas as nossas ações, no coração da “realidade”. 46

Essa situação de instabilidade, essa deriva e essa incerteza generalizada determinam todos os fatos, os acontecimentos e a interpretação deles rumo a um estágio que poderíamos chamar de meteorológico. 46

Pois a meteorologia faz-se de qualquer jeito política, a política faz-se, por seu turno, meteorológica. 48

O continente negro da infância

Como tantos outros domínios, a infância e a adolescência convertem-se hoje em espaço destinado por seu abandono à deriva marginal e à delinqüência. 51

Em conseqüência, a criança passa a ser operacional, performance técnica e projeção identitária – mais prótese em miniatura do que verdadeiro “outro”. 51

Espécie de subproduto de duplicação incestuosa, próxima, no fundo, da cissiparidade dos protozoários e concebida como excrescência ideal da imagem dos pais. 51-52

Toda essa operação técnica não é para amanhã, mas já está presente no imaginário científico coletivo, e até mesmo na relação entre pais e filhos. 52

Há de resto uma estranha coincidência entre esse estado infantil anterior ao princípio de realidade virtual, nosso universo midiático adulto, posterior da realidade, onde o real e o virtual se confundem. Eis o que explica, aliás, a afinidade espontânea de uma geração jovem com as novas tecnologias do virtual. 53

O ritmo atual, do imediatismo, da aceleração, do tempo real, vai exatamente de encontro à concepção, à gestação, ao tempo de procrição e de criação, da longa duração em geral à qual corresponde a infância humana. Condena-se, portanto, logicamente, a criança a desaparecer. 53

Hoje, a aceleração geral condena a infância à obsolescência acelerada. 53

Portanto a criança será exorcizada e eliminada enquanto ser natural, como anomalia, sobrevivência anacrônica num tempo de performance máxima imediata. 54

A infância era, do fundo de sua irrealidade, do fundo de sua idiotice, um dos últimos bastiões da ilusão poética do mundo. 55

A dupla exterminação

Hoje, não pensamos o virtual; somos pensados pelo virtual. Essa transparência inapreensível, que nos separa definitivamente do real, nos é tão ininteligível quanto pode ser para a mosca o vidro contra o qual se bate sem compreender o que a separa do mundo exterior. Ela não pode nem sequer imaginar o que põe fim ao seu espaço. Assim, não podemos nem imaginar o quanto o virtual já transformou, como que por antecipação, todas as representações que temos do mundo. Não podemos imaginá-lo, pois o virtual caracteriza-se por não somente eliminar a realidade, mas também a imaginação do real, do político, do social – não somente a realidade do tempo, mas a imaginação do passado e do futuro. 57

A ilusão que temos ainda de todas essas categorias tradicionais – inclusive a ilusão de nos “abrimos ao virtual” como a uma extensão do real de todos os possíveis – é a ilusão da mosca que recua incansavelmente para melhorar e chocar-se de novo contra o vidro. Porque cremos ainda na realidade do virtual, enquanto este já virtualmente eliminou todas as pistas do pensamento. 57

Os negocionistas são francamente aberrantes e estão francamente errados quando, realistas eles mesmos, contestam a realidade histórica e objetiva da exterminação. No tempo histórico, o acontecimento ocorre e as provas estão aí. Mas não estamos mais no tempo histórico; doravante, estamos no tempo real, e, no tempo real, não há mais provas de nada. 58

O tempo real é um gênero de buraco negro onde nada penetra sem ser esvaziado de sua substância. 58

[...] a exterminação real está fadada a essa outra exterminação, a do virtual. Eis a verdadeira solução. 59

“Apocalipse do virtual”, que entreve ao término dessa evolução, ou melhor, dessa involução de nosso mundo em tempo real. 60

Sonhar com a “Catástrofe final” significa prender-se à ilusão do fim e esquecer que a virtualidade mesma é virtual e, por definição, seu advento definitivo, seu apocalipse, não saberia tomar forma de realidade. Não haverá apocalipse do virtual e do tempo real justamente porque o tempo real liquida o tempo linear e a duração e, por isso mesmo, a dimensão onde poderiam desenvolver-se ao máximo. 60

O sistema do virtual, como não importa qual outro, está fadado a destruir, na medida de sua extensão, as suas próprias condições de possibilidade. 60

O social, o político, o histórico e mesmo o moral e a psicologia – só há acontecimento virtual de tudo isso. Significa dizer que é inútil procurar uma política do virtual, uma ética do virtual, etc, dado que a própria política torna-se virtual, a ética mesma tornou-se virtual, no sentido de que ambas perdem o princípio de ação e a força da realidade. Mesmo no que se refere à técnica: fala-se das “tecnologias do virtual”, mas a verdade é que em breve só existirão técnicas virtuais. Ora, não há mais pensamento do artifício num mundo em que o próprio pensamento, a inteligência, torna-se artificial. Nesse sentido, podemos dizer que o virtual nos pensa, e não o inverso. 61

O excesso de informação, o forcing publicitário e tecnológico; a mídia, o deslumbramento ou o pânico – tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos. Windows 95, Internet, as autoestradas da informação – tudo isso é já e cada vez mais consumido por antecipação, no discurso e no fantasma. 61

Perdidos de vista e realmente desaparecidos

Jacques Pradel, outro ilusionista da televisão, outro virtuose do desaparecimento. Em cores, em Perdidos de vista. 63

Revela-nos – escondido atrás da telinha e das imagens – que os verdadeiros desaparecidos são os milhões de telespectadores assistindo espantados a seu passe de mágica e identificando-se com todas as forças ao procurado – esperando com todas as forças ser descoberto e arrancados da inexistência: logo retirados literalmente de circulação. 63

Trata-se do acontecimento mais importante da história moderna, e desse acontecimento cada um é ator pelo fato mesmo de estar diante de sua tela de televisão: perder-se de vista o real enquanto se é perdido de vista. 64

Sempre o problema do real: que somos na ausência do objeto? Que acontece ao objeto quando estamos ausentes? Volta a ser real?

Sepultaremos assim cada vez mais fragmentos inteiros da biosfera para dar-lhes autenticidade artificial. Eles são protegidos, congelados, empacotados na esperança insensata de apagar nossos próprios rastros e de restituir as coisas à sua originalidade profunda. 65-66

Pois sabemos que conosco e com todas as nações, o mundo nunca mais será real, original, e que desde agora tudo está fadado à maldição da tela, à maldição do simulacro. Estamos num mundo onde a função essencial do signo consiste em fazer desaparecer a realidade e ao mesmo tempo colocar um véu sobre esse desaparecimento. Atrás de cada imagem, alguma coisa desapareceu. 66

A que serve, em contrapartida, de criogenizar (a exemplo de Disney em sua cápsula de azoto), de congelar, de museificar as obras, as culturas, em vista de uma imortalidade artificial e improvável, a não ser em razão do obscuro pressentimento de que tudo está em via de desaparecimento? 67

“Não se deve crer que a verdade permanece verdade quando se retira o seu véu”, dizia Nietzsche. Mas seria preciso não crer tampouco, como parecemos fazer, nós contemporâneos do desnudamento da verdade, que esta volta a ser verdade quando vestida de novo ou empacotada. 67

A sexualidade como doença transmissível

Parece que a própria sexualidade está em causa – cada sexo estando como que afetado por uma doença sexualmente transmissível, o próprio sexo. 69

Tem-se medo de pegar AIDS, mas tem-se medo também de pegar qualquer coisa que se assemelhe à paixão, à sedução, à responsabilidade. 69

Aí reside a vitória paradoxal do movimento de emancipação feminina: este teve demasiado êxito e deixa o feminino diante da fragilidade (mais ou menos tática e defensiva) do masculino. Daí resulta uma situação paradoxal que não é mais a do feminismo. Não mais a reivindicação das mulheres contra o poder do homem, mas o ressentimento das mulheres contra o “impoder” do masculino. 70

Conseqüência paradoxal do triunfo virtual do feminismo, a mulher não é mais alienada pelo homem, mas despojada do masculino, logo despojada da ilusão vital do outro, portanto também de sua própria ilusão, de seu desejo e de seu privilégio de mulher. 70

Não se trata mais da violência dos filhos em ruptura com a ordem parental, mas do ódio de crianças despojadas de seu estatuto e da ilusão filial. 70

Por trás dessa polêmica do assédio, há a forma ulterior e contemporânea de “dessublimação repressiva”, de que falava Marcuse – a queda dos interditos conduz a um novo sistema de repressão e de controle. 72

O ódio ao qual remete a questão do assédio sexual não seria talvez mais do que o ressentimento da liberdade, da individualidade, da expressão de desejo duramente conquistadas, cuja contrapartida atual seria uma nova servidão voluntária? A própria servidão, a asneira, a resignação poderiam tornar-se doença sexualmente transmissíveis? 73

A soberania da greve

“Pergunte o que você pode fazer pelo Estado e não o que o Estado pode fazer por você” (segundo uma declaração célebre). Pois o Estado não pode mais nada nem econômica nem, sobretudo, politicamente, sendo presa dos mercados e dos fluxos que o dominam de longe. Não cabe sequer perguntar o que o Estado pode fazer pelo Estado: ele se autocolocou em desemprego técnico. 76

Essa longa marcha traduz também o sonho de uma sociedade mais leve, em que a democracia não seria mais a condescendente, das elites nem a, reivindicativa, dos hilotas, mas onde as pessoas andariam por elas mesmas, segundo suas próprias necessidades e suas próprias regras. 78

Há acontecimentos, dizia Nietzsche, que levam um século para chegar até nós, verdades que não ousamos encarar e permanecem bloqueadas numa espécie de purgatório. Tal como, sem dúvida, o fato de que doravante os acontecimentos não ocorrem mais ao longo da História e das estratégias políticas, mas contra a História e contra a política. 79
Terra do fogo – Nova York ou o fantasma do fim do mundo

Dívida mundial e universo paralelo

A dívida global, planetária, não tem evidentemente nenhuma significação em termos tradicionais de obrigação e de crédito. Em contrapartida, é nossa verdadeira crença coletiva – crença simbólica através da qual as pessoas, as empresas, as nações acham-se comprometidas à revelia umas com as outras. Cada um é consignado ao outro (mesmo os bancos) por sua falência virtual, como os cúmplices o são por seus crimes. 88

Nossos verdadeiros satélites artificiais são a dívida mundial, os capitais flutuantes e as cargas nucleares que cercam a terra com sua circulação orbital. Convertidos em artefatos puros, de mobilidade sideral e de conversibilidade instantânea [...]. 89

O último em data desses universos paralelos em via de informação e desenvolvimento exponencial é a Internet e as redes mundiais de informação. 90

[...] pode-se dizer que esse imenso potencial nunca será resgatado, no sentido de que não atingirá jamais a sua plena utilização e o seu fim. 90

Pois é claro que se uma certa dose de informação reduz nossa ignorância, uma dose massiva de inteligência artificial só pode convencer-nos do déficit de nossa inteligência natural e aí nos afundar. O pior num ser humano é mesmo saber demais e ser inferior ao que sabe. 90

A razão gostaria sem dúvida que reintegrássemos esses universos ao nosso, num mundo homogêneo: que se encontre o uso pacífico do nuclear, que todas as dívidas sejam verificadas, que os capitais flutuantes sejam reinvestidos em riqueza social, que toda informação se inscreva no saber. 91

Talvez esteja certo assim. Porque se a coesão de nossas sociedades era mantida outrora pelo imaginário do progresso, ela o é hoje pelo imaginário da catástrofe. 91


A sombra do comandante

De um câncer a outro: do câncer de próstata ao da informação. Impossibilitados de conjurar as metástases biológicas através da medicina, nós as conjuramos pelo silêncio. Impossibilitados de conjurar as metástases da informação, nós as interditamos pela lei. 93

Pois não se pode julgar o próprio Mitterrand. Tudo que se pode imputar-lhe é o servilismo dos outros, a extraordinária complacência, cumplicidade, recusa de lucidez que promoveu o gozo ao longo do seu reinado: essa fraqueza coletiva do reflexo político, essa crescente impotência diante do imenso delito de iniciado que se tornou poder. 95

É preciso dizer que se sacrificou, até a morte, pela hipótese de sua pessoa. A ambição, a arrogância dos “grandes homens” e o servilismo automático da massa são, em nosso sistema de mídia, extensões políticas umas das outras. 95

Fomos governados por um homem preocupado somente com a própria morte e destilando-a em doses homeopáticas em todas as redes e tecidos da vida política – impedindo toda imaginação diferente. Pois se a imaginação, contrariamente ao que se diz, nunca sonhou estar no poder, o poder, por sua vez, sempre sonhou devorar a imaginação – terminando, em geral, por devorar a própria imagem. 96

O espelho da corrupção

[...] o que chamamos pudicamente de apropriação indébita diz respeito com freqüência à ventilação de bens e de ganhos quase tão ilícitos quanto o dinheiro do tráfico de drogas. 99

Ninguém denuncia esse escândalo, sob pretexto de que se encontra fora do alcance da lei. Mas sabemos que a fraude “legal” é bem mais importante do que a fraude ilegal – o que relativiza e de certa maneira ridicularizada a operação anticorrupção que serve do seu jeito de cobertura e de álibi para a corrupção real. 99

A corrupção não desperta, no fundo, indignação coletiva (mas claro é cuidadosamente filtrada pela mídia), nem essa verdadeira ajuda à corrupção constituída pela lei de anistia em esboço (reflexo dessa que generosamente se concederam os deputados); essa verdadeira infâmia não provoca o protesto esperado da opinião pública democrática. 100

O que as pessoas desejam, no fundo, é que lhes dêem a oportunidade de dar, como lhes foi dada por outro lado a oportunidade de votar, ou ainda, em qualquer reality show, a oportunidade de exprimir-se. Quem os satisfaz, mesmo tirando proveito, exerce, logo, um verdadeiro serviço público. 101

De fato, o interesse, a utilidade nunca é última palavra da história. Moralizar o dinheiro, moralizar os recursos nunca foi a função primordial de uma sociedade, mesmo se isso consta como o pretenso ideal de todas as nossas democracias. O dinheiro continua por toda parte e sempre a parte maldita, a parte imoral, a parte do mal, e a função primordial permanece a administração dessa parte maldita, anular, lavar o dinheiro através do jogo, do desperdício, do desvio, da corrupção, destruir o mal com o mal. 101

A idéia de redistribuição racional dos recursos, além de ser impraticável como a experiência mostra, é uma ideologia perigosa, que confunde o fim e os meios. Crê que o dinheiro é um meio que pode ser resgatado para fins úteis. Doce ilusão, o dinheiro é um médium, não um meio, e tem a potência de um médium que se desenvolve segundo seus próprios fins. 102

Se seguimos as vias da política e do mal, as vias irônicas da corrupção, então chegamos a uma conclusão reconfortante: a corrupção é o mal que nos preserva do pior. 103

Disneyworld Company

Mas Schtroumpfland era apenas uma miniatura. O empreendimento Disney tem outra dimensão. Para se ter uma idéia, é preciso saber que Disney “Illimited”, depois de ter anexado uma das maiores redes de televisão americana, está prestes a comprar a rua 42, em Nova York, a parte “quente” da rua 42, para fazer uma zona de atração erótica, sem mexer em nada, ou quase, ali: simplesmente transformar ao vivo, in situ, um palco sagrado da pornografia em sucursal da Disneyworld. Transformar os empresários da pornografia, as prostitutas, como os metalúrgicos de Schtroumpfland, em figurantes de seu próprio mundo, uniformizados, museificados, disneificados. 105

Mas a empresa Disney vai além do imaginário. O grande precursor, o iniciador da realidade virtual do imaginário tende a dominar, hoje, todo o universo real, pra integrá-lo no seu universo de síntese, sob a forma de um reality show, no qual a própria realidade dá o espetáculo, onde o real mesmo se torna um parque de atrações. Transfusão do real como uma transfusão de sangue – trata-se aqui de uma transfusão de sangue real no universo enxágüe do virtual. Depois da prostituição do imaginário, eis a alucinação do real em versão ideal e simplificada. 106

[...] é inútil procurar vírus informáticos; estamos todos presos no encadeamento viral das redes, e o vírus é a própria informação, ainda não transmissível sexualmente, mas bem mais eficaz por via digital. 107

Assim, Disney só tem que se abaixar para recolher a realidade tal qual ela é. “Espetacular integrado”, diria Guy Debord. Mas não estamos mais na sociedade do espetáculo – ela mesmo convertida em conceito espetacular. Não é mais o contágio do espetáculo que altera a realidade, mas o contágio do virtual que apaga o espetáculo. 107

Tornamo-nos não mais espectadores alienados e passivos, mas figurantes interativos, gentis figurantes mumificados desse imenso reality show. 108

O figurante da realidade virtual não é mais ator nem espectador, está fora de cena, é obsceno. 108

O mundial e o universal

Mundialização e universalidade não andam de mãos dadas; haveria, em princípio, autonomia de uma em relação à outra. A mundialização diz respeito aos tecnocratas, ao mercado, ao turista, à informação. A universalidade, aos valores, aos direitos humanos, às liberdades, à cultura, à democracia. 111

Toda a cultura que se universaliza perde sua singularidade e agoniza. Foi assim com as culturas que destruímos, assimilando-as pela força, mas o mesmo vale para a nossa em sua pretensão ao universal. 111

Estamos diante de um dispositivo complexo em três níveis: mundialização das trocas, universalidade dos valores e singularidade das formas (língua, cultura, indivíduos, caracteres, mas também acaso, acidente, etc. – tudo que o universal recusa conforme a sua lei como exceção ou anomalia). 114

O universal teve a oportunidade histórica. Mas, agora, confrontados à nova ordem mundial sem alternativas, à mundialização sem apelação, de um lado, e à deriva ou à insurreição tenaz das singularidades, de outro, os conceitos de liberdade, de democracia, de direitos do homem figuram palidamente, não sendo mais do que fantasmas de um universo desaparecido. 114-115

Deep Blue ou a melancolia do computador

O confronto de um ser humano e de artefato “inteligente” [...] é altamente simbólico, não somente pelo prestígio do jogo de xadrez, mas porque resume o dilema do homem face às máquinas contemporâneas que utiliza: informatizadas, virtuais, cibernéticas, em rede etc.; por trás do uso instrumental, criativo ou interativo, trata-se no fundo de uma partida, de uma competição, de um desafio, de um confronto em que qualquer um pode fracassar ou perder a dignidade. 117

Kasparov venceu enfim o computador, e todo mundo ficou aliviado, pois era um pouco a honra da espécie que estava em jogo. 117

O homem, ao mesmo tempo que sonha com todas as suas forças em inventar uma máquina mais forte do que ele mesmo, não pode admitir a possibilidade de não ser o mestre de suas criaturas. Tanto quanto Deus. 117

Será que, diante do perigo de supremacia dos computadores, não deveríamos espalhar, nas linguagens artificiais, a mesma confusão que Deus nas línguas naturais? 118

Sabemos que a diversidade das línguas tornou-se, por fim, o privilégio do homem e a sua arma absoluta. 118

No dia em que esta prevalecer, seja como for, Kasparov será batido; o dia em que o próprio homem só falará essa música e exclusiva língua, a dos computadores. 118

Com um simulacro, evidentemente, precisa-se atuar contra as próprias características, simular melhor do que ele e tomar de surpresa, a despeito da simulação, que para ele se limita à do cálculo, enquanto, para o homem, é uma potência irônica. 120

O jogador é mortal; somente a regra é imortal. 121

Face ao computador, o homem encarna o infinito da complexidade, que não é o do cálculo, e talvez esteja mais próximo do acaso [...]. 121

A máquina pode ser inultrapassável por todo tipo de operação, mas no que diz respeito à essência do jogo, estará para sempre prejudicada – fora do jogo. 121

O homem soube inventar máquinas que trabalham, deslocam-se, pensam melhor do que ele, ou em lugar dele. Nunca inventou uma que pudesse gozar ou sofrer em seu lugar. Nem mesmo que possa jogar melhor do que ele. Talvez isso explique a profunda melancolia dos computadores. 122

Ruminações para encéfalos esponjosos

A epidemia das vacas loucas é, em princípio, a epidemia do amolecimento cerebral das populações humanas, girando desconcertadas em torno delas mesmas, num prodigioso acesso de mimetismo bovino. Trata-se de um teste em tamanho natural sobre a qualidade do rebanho humano. 123

As redes de comunicação constituem um imenso campo viral, e a transmissão instantânea é em si mesma um perigo mortal. 123

A vaca nunca suportou ter-se convertido, recentemente, em função desse ideal carnívoro, num simulacro de vaca. 124

A vaca não é mais a mesma; artefato, espécie de carne desencantada, vinga-se pelo suicídio, infectando o seu predador. 124

AIDS, terrorismo, krash, vacas loucas, vírus eletrônicos, catástrofes naturais: todos esses fenômenos são correlatos e obedecem ao mesmo protocolo de virulência. São coerentes entre eles e coerentes com a banalidade do sistema. 125

Portanto, o aparecimento das vacas loucas equivale a um ato terrorista. 125

Sem dúvida, o próximo encontro mundial de cúpula será realizado contra os tremores de terra, com o mesmo sucesso. Ninguém mais duvida que essa borrasca nascida da cumplicidade de uma vaca e de uma proteína termina com o bater de asas de uma borboleta, isto é, sem nada alterar na ordem das coisas, mas entrementes terá revelado a desordem secreta, a desordem colossal dos nossos sistemas, sua queda sempre iminente. 127

Tela total

Vídeo, tela interativa, multimídia, Internet, realidade virtual: a interatividade nos ameaça de toda parte. Por tudo, mistura-se o que era separado; por tudo, a distância é abolida: entre os sexos, entre os pólos opostos, entre o palco e a platéia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e o seu duplo. 129

Até no reality show, onde assistimos, na narrativa ao vivo, no acting televisual imediato, à confusão da existência e de seu duplo. Nada mais de separação, de vazio, de ausência: entramos na tela, na imagem virtual sem obstáculo. Entramos na vida como numa tela. Vestimos a própria vida como um conjunto digital. 129

Diferentemente da fotografia, do cinema e da pintura, onde há uma cena e um olhar, a imagem-vídeo, como a tela do computer, induz a uma espécie de imersão, de relação umbilical, de interação “tátil”, como já dizia McLuhan sobre a televisão. 129-130
Livre para deslocar-se, cada um faz o que quer da imagem interativa, mas a imersão é o preço dessa disponibilidade ilimitada, dessa combinatória aberta. Dá-se o mesmo com o texto, qualquer texto “virtual” (Internet, Word-processor), trabalhando como imagem de síntese, sem mais nada a ver com a transcendência do olhar ou da escrita. De qualquer maneira, dede o momento em que estamos diante da tela, não percebemos mais o texto enquanto texto, mas como imagem. Ora, escrever torna-se atividade plena na separação estrita do texto e da tela, do texto e da imagem – nunca uma interação. 130

As dimensões do próprio tempo confundem-se no tempo real. 130

Paralelamente, tudo o que é produzido por meio da máquina é máquina. Textos, imagens, filmes, discursos, programas saídos do computador são produtos maquínicos, com as devidas características: artificialmente expandidos, levantados pela máquina, filmes repletos de efeitos especiais, textos carregados de partes supérfluas, de redundâncias devido à vontade maligna da máquina de funcionar a qualquer preço (é a sua paixão) e à fascinação do operador por essa possibilidade infinita de funcionamento. 131

Na frente, o design maquínico do corpo, do texto, da imagem. A isto se chama cibernética: controlar o interior, da matriz, a imagem, o texto, o corpo, jogando com o código ou as modalidades genéticas. 131

De fato, a máquina (virtual) nos fala; ela nos pensa. 131

Há no cyberespaço a possibilidade de realmente descobrir alguma coisa? Internet apenas simula um espaço de liberdade e de descoberta. Não oferece, em verdade, mais do que um espaço fragmentado, mas convencional, onde o operador interage com elementos conhecidos, sites estabelecidos, códigos instituídos. 132

A droga mesma nunca é mais do que o exemplo perfeito da louca interatividade em circuito fechado. Em nome da domesticação, dizem-nos: o computador não passa de uma máquina de escrever mais prática e mais complexa. É falso. A máquina de escrever é um objeto perfeitamente exterior. A página flutua ao ar livre, e eu também. 132

O computador é uma verdadeira prótese. Tenho como ele uma relação não somente interativa, mas tátil e intersensorial. 132

A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por eliminar sub-repticiamente a referencia às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo tempo, tudo esconde. O sujeito realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo automático, objeto; instala-se o pânico. 133

O complô da arte

Se na pornografia ambiente foi perdida a ilusão do desejo, na arte contemporânea perdeu-se o desejo de ilusão. No pornô, não há espaço para o desejo. 135

Transexual remete à ausência de ilusão do desejo e à hiper-realidade da imagem. 135

Para a arte, a orgia da modernidade consistiu na alegria da desconstrução do objeto e da representação. 135

Na realidade, não há mais pornografia propriamente dita, pois a pornografia está virtualmente por toda parte, porque a essência do pornográfico instalou-se em todas as técnicas do visual e do televisual. 135

A arte (moderna) teve a oportunidade de integrar a parte maldita, sendo uma espécie de alternativa dramática à realidade, traduzindo a irrupção da irrealidade na realidade. Mas o que pode ainda significar a arte num mundo hiper-realista por antecipação, cool, mas transparente, publicitário? Que pode significar o pornô num mundo submetido à pornografia por antecipação? A não ser nos atirar um último piscar de olhos paradoxal – o da realidade que ri de si mesma sob a forma mais hiper-realista; o do sexo que ri de si mesma e do seu próprio desaparecimento sob a forma mais artificial: a ironia. 136

A duplicidade da arte contemporânea resume-se a isto: reivindicar a nulidade, a insignificância, o nonsens, visar à nulidade quando já se é nulo. Visar ao nonses quando já se é insignificante. 137
Os outros só têm uma estratégia comercial da nulidade, à qual dão forma publicitária, a forma sentimental da mercadoria, como dizia Baudelaire. Escondem-se atrás da própria nulidade e das metástases do discurso sobre a arte, empregado generosamente para valorizar essa nulidade [...]. 138

[...] a arte entrou [...] no processo geral de delito de iniciado. Não é única em causa: a política, a economia e a informação gozam da mesma cumplicidade e da mesma resignação irônica junto aos “consumidores”. 139

A arte terá direito a uma segunda existência, eterna – semelhante a dos serviços secretos que, como sabemos, não têm mais, depois de muito tempo, segredos para roubar ou trocar, mas não deixam de florescer, protegidos pela superstição de sua utilidade e chamando a atenção da crônica mitológica. 139

Fantasmas televisuais

A televisão chama bastante a atenção nos tempos que correm. Faz falar dela. Em princípio, ela está aí para nos falar do mundo e para apagar-se diante do acontecimento como um médium que se respeite. Mas, depois de algum tempo, parece, ela não se respeita mais ou torna-se pelo acontecimento. 141

É aí que a televisão começa a corromper-se. Questionada por todos e incapaz de responder à interrogação fundamental que é, ao mesmo tempo, a principal acusação: que está acontecendo com as imagens e com o sentido destas, com o mito da informação e com a televisão que se exibe, sem vergonha, por toda parte? 142

[...] a televisão perdeu ao mesmo tempo a idéia do que faz e a imaginação do mundo real. Em conseqüência, só fala para si mesma ou, o que dá no mesmo, para um público não identificado do qual só espera a audiência. 142

Vemos, de fato, a proliferação das redes, dos cabos, dos programas, com o desaparecimento e a liquidificação dos conteúdos. O zapping quase involuntário do telespectador fazendo eco ao zapping da TV sobre si mesma. 143

A verdadeira corrupção, porém, não se encontra aí. O vínculo secreto está no fato, já assinalado por Umberto Eco, de que os meios de comunicação remetem uns aos outros, e só falam entre eles. O multimédium tornou-se intermédium. 143

Não há necessidade de consciência política para saber que depois das famosas latas de lixo da história, estamos às voltas agora com as latas de lixo da informação. Ora, a informação é talvez um mito, mas nos empanturramos com esse mito sobressalente, substituto moderno dos demais valores. O contraste entre esse mito universal e a situação atual das coisas é impressionante. A verdadeira catástrofe da televisão é essa profunda decepção quanto à função moderna da informação. 144

Percebemos a inutilidade de querer localizar a imaginação em algum lugar, simplesmente porque ela não existe mais. No dia em que isso se tornar flagrante, a vaga decepção coletiva que paira na atualidade se transformará numa náusea gigante. 145

Certo, Chirac é uma nulidade

O fim do ano é, como bem sabemos, época difícil por causa da obrigação de festejar que desperta por toda a parte, mesmo entre os que se divertem, o espectro do abandono. Precisamente aí, na euforia representada, coloca-se a questão crucial do vínculo social. 147

Chirac é uma nulidade, mas nós todos também o somos. Pois nem sequer é possível questionar se o somos porque ele o é, ou o contrário. Não há origem da nulidade que existe imediata e reciprocamente feito um segredo partilhado; nós a saboreamos implicitamente, como a própria essência do vínculo social – sancionada por essa outra nulidade interativa: a tela. 148

Hoje, enquanto “povo”, somos todos nulidades, o que significa o desaparecimento da representação; só há figuração: nós, da base, somos figurantes da estatística; os “políticos”, de televisão. 149

Como na história do ilusionista forçado, no palco, a tornar artificialmente mecânicos os seus gestos para diferenciar-se do autômato com o qual divide a cena, cujo comportamento perfeito impede a distinção entre o homem e a máquina. Eis o que ocorre: não separamos mais Chirac da situação. Ele se confunde perfeitamente com a nulidade automática do estado das coisas. Não podemos lhe querer mal; só nos resta sentir pena dele. Trata-se de sua natureza profunda, de seu mecanismo básico de adaptação, de seu rousseaunismo de jardineiro paisagista do cenário político. 150

História de clones – o original e seu duplo

Depois da vaca louca, a ovelha clonada. Crazy Cow e Baby Dolly. E não é por acaso que desempenham juntos o tema astral deste fim de século. Vai-se poder clonar cada vez mais ovelhas e fabricar assim cada vez mais farinhas animais que alimentarão cada vez mais vacas loucas. 153

Mas a analogia vai mais longe: a clonagem é uma forma de epidemia, de contágio, de metástase da espécie tomada pela reprodução do idêntico e a proliferação ao infinito, para além do sexo e da morte. 153

A multiplicação só é positiva em nosso sistema de acumulação. Na ordem simbólica, equivale a uma subtração. 156

No fundo, toda essa história de clonagem não é nova e tivemos a experiência viva em todos os domínios – intelectuais, culturais, operacionais – , sem contar os do trabalho e da técnica, onde o sistema nos ensinou, já faz muito tempo, a ser apenas o clone de nós mesmos ou o clone uns dos outros. 156

No sentido que, como Blade Runner, já é quase impossível distinguir o comportamento propriamente humano de sua projeção na tela, de seu duplo em imagem e de suas próteses informáticas. 156

O conflito não está perto de terminar entre o original e seu duplo, nem o Clash entre o real e o virtual. 158
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