Gustavo Lima 12/11/2015
O que é a servidão? Como podemos defini-la segundo La Boétie? Podemos definir da seguinte maneira: servidão é a condição artificial de um indivíduo fica privado de sua liberdade por estar submetido à vontade de um tirano. Ao observar essa condição, verificamos que ela não é nada agradável. E o que seria a "servidão voluntária"? É uma condição onde o indivíduo está submetido ao tirano por seu próprio consentimento e contribuição. Um questionamento que podemos fazer após entendermos isso é, se a liberdade é um bem tão caro e tão precioso para nós, por que alguém consentiria em se submeter a alguém e ainda contribuir voluntariamente para a privação dela? Por que alguém ira apoiar de modo voluntário essa condição que ninguém quer estar? Essa é questão central que Étienne de La Boétie (1530-1563) busca responder nessa obra.
A primeira coisa que temos que observar para se ter uma ideia do absurdo que é estar submetido a um tirano é que o tirano é um homem só, uma pessoa como qualquer outra, de carne e osso e com limitações humanas comuns a todos. Como é que um único homem pode inspirar medo em milhares de outros? E será mesmo que quem o serve voluntariamente, o faz por ter medo dele? A possibilidade de que a covardia é o causa da servidão é imediatamente descartada por La Boétie. É possível que um homem tenha medo de outro, mas para La Boétie é impossível que cem milhões tenham medo de um só.
La Boetie argumenta que para manter os outros sobre o seu jugo, ele utiliza uma hierarquia de pequenos tiranos abaixo dele, um grupo pequeno de bajuladores que se aproximam dele com o objetivo de obter vantagens e com isso tornam-se cúmplices de sua tirania. A esse pequeno grupo de indivíduos é dado o poder sobre uma determinada província. Cada um deles tem um conjunto de subordinados que dão apoio ao seu poder. Estes por sua vez também tem seus subordinados que possuem outros subordinados e assim por conseguinte até chegar às massas. Com isso, o tirano mantém seu poder através de uma hierarquia de indivíduos que estão interessados em participar do poder do tirano para adquirir benesses.
Além dessa hierarquia, o tirano também usa outros artifícios para manter seu poder. Eles privam seus súditos da educação, pois aqueles que pensam representam uma ameaça em potencial ao poder deles; eles embrutecem o povo, ou seja, idiotizam as massas através de "iscas da servidão", como a política do "pão e circo" por exemplo; utilizam a religião como meio para manterem os súditos obedientes e sempre lançam mão de discursos demagógicos onde afirmam que seu objetivo é o "bem público e o interesse geral da nação".
La Boétie também nos chama a atenção para o fato de que nos habituamos facilmente a servidão e de como o ele é uma força que contribui para perpetua-la. Indivíduos livres, quando imediatamente subjugados, servem ao tirano de modo forçado. Porém, quando os indivíduos já nascem sob o jugo da servidão, encaram seu estado como "natural" e dessa forma, através do hábito, a sujeição ao tirano é aceita e passivamente consolidada. Isso significa que quando alguém nasce numa sociedade onde servir voluntariamente é um costume de todos, essa vivência acaba sendo incorporada à formação e ao desenvolvimento do indivíduo. Desse modo, ele aprende a encarar com naturalidade a estar submetido ao tirano e enxergar isso como algo absolutamente normal.
Como por fim a servidão? Para essa pergunta La Boétie nos traz uma resposta simples porém profunda: não consentindo com ela. E como fazer isso? Deixando de financiar o tirano. Não consentindo. O tirano só tem o poder porque existem pessoas que estão dispostas a servi-lo. Se essas pessoas simplesmente deixassem de obedece-lo, o poder dele ruiria naturalmente, sem que fosse necessário fazer qualquer esforço. Não é necessário nem que haja uma luta armada para derrubá-lo. Basta simplesmente que ninguém o obedeça. Lá Boétie explica que o poder do tirano é como o fogo. Para extingui-lo, não é necessário jogar água, basta apenas que não seja alimentado.
Lá Boétie alerta aos cúmplices do tirano que servi-lo em troca de bens é a pior decisão que eles podem tomar. Ele mostra algumas razões para isso: (1) Servindo ao tirano eles acabam renunciando a própria liberdade. (2) Não basta obedecer ao tirano, é necessário também agradá-lo. (3) O tirano será inconstante para defendê-los e os esmagará sem remorso quando lhe for conveniente, Nero é um exemplo disso. (4) Não se pode esperar amizade do tirano pois ele não vê seus cúmplices como amigos mas como "pessoas que trapaceiam e mendigam seus favores". (5) O tirano nunca ama e nunca é amado. (6) O tirano é alguém que aprendeu que está acima de todos, que nenhum dever o obriga e que sua vontade é a lei. (7) Eles não precisam do tirano para terem bens.
Por fim, quero deixar registrado o entendimento de La Boétie sobre a liberdade. Para ele, a liberdade é um direito natural, sendo totalmente desnecessário questionar isso, pois não se pode manter alguém em servidão sem prejudicá-lo. Além disso, todos nascem com a paixão pela própria liberdade, pois ninguém é privado dela sem antes oferecer firme resistência. Ele exemplifica isso mostrando que os próprios animais resistem quando vão ser capturados enquanto outros, acostumados desde sempre à vida livre, quando são capturados, não resistem ao cárcere, definham e acabam morrendo precocemente. Quem mantém alguém em servidão, comete injustiça e para ele não há nada que seja mais contrário a natureza do que a injustiça. Nossas diferenças de aptidões naturais e talentos, como força e inteligência que são mais presentes em uns do que em outros, não existem para que vivamos guerreando uns contra os outros. De acordo com La Boétie, essa diferenças são úteis para que aqueles que tem mais possam ter a oportunidade de demonstrar afeição fraterna para os que tem menos. Aqui podemos ver uma espécie de "teleologia das diferenças naturais".