Pilantrinha 29/01/2023
Quando mulheres são machistas (e porque isso pode ser um problema gigantesco)
Para esse ano de 2023 eu tenho um projeto: trazer meu inglês de volta a um patamar aceitável. Tanto tempo sem usar o idioma fez com que ele chegasse em um estado deplorável, então arquitetei um plano: reler livros antigos em inglês. Imaginei que seria mais fácil ler histórias que eu já conhecia, e isso faria com que a coisa corresse mais rápido.
Para começar, peguei um livro que eu já tinha no Kindle em seu idioma original, o duvidosíssimo Beautiful Bastard. Eu lembrava da história, e na minha cabeça não tinha nada esquisito ou absurdo, mas eu li isso há muito tempo, era menor de idade e estava no ensino médio. Então já fui me preparando para lidar com algumas situações problemáticas, porque tinha certeza que eles aconteceriam.
Ó, Ceus.
Aqui nós temos o Ryan Bennet, ou Mr. Bennet, que é o CEO da empresa onde a Chloe Mills trabalha -- e é sua secretária. A dinâmica aqui é bem mais do mesmo. Os dois "se odeiam", trocam farpas o tempo todo, mas vão construir uma relação a partir disso. O que começa, é claro, com sexo casual. Parece tudo dentro da normalidade desse tipo de obra, mas diversas coisas me deixaram bem desconfortável. Vamos por partes.
No início do livro o Bennet pede que a Chloe faça uma apresentação de uma conta como vingança por um atraso dela. Ela então passa o dia igual maluca trabalhando, não consegue nem comer, e ainda se atrasa para a tal apresentação. Chegando lá, acontece uma situação que é, no mínimo, preocupante.
Veja como ela é narrada (vou fazer uma tradução livre, porque não tenho ideia de como isso chegou no português): "Eu estava inclinada na mesa, gesticulando para os gráficos, quando aconteceu [...] Parei no meio da frase, minha respiração presa na garganta. A sua mão estava gentilmente pressionada na minha lombar antes de deslizar para baixo, ficando na curva da minha bunda. Nos nove meses que trabalhei para ele, ele nunca me tocou intencionalmente".
Quando estava lendo, parei um pouco e fiquei boquiaberto. É uma clara cena de assédio em ambiente de trabalho sendo narrada. É uma secretária fazendo a apresentação de uma conta por causa da birra do seu chefe enquanto ele a apalpa. Além disso, todo o contexto é bisonho e problemático. É aceitável que seu chefe passe a mão na sua bunda no seu ambiente de trabalho quando ele é um "bastardo irresistível", mesmo que você não tenha consentido nada?
Esse aqui. Esse aqui é o tipo de conteúdo que é usado aos montes para deslegitimar situações reais de assédio. O que muda do Mr. Bennet para o seu Carlos, além da massa muscular? São dois caras mimados e tarados por poder, que vão usar seu cargo sempre que puderem. Quem nunca ouviu o "só é assédio quando o cara é pobre ou feio, quando é rico e bonito ele tem atitude, é confiante". É uma estupidez, não é? É exatamente o que acontece nesse livro.
E continua. Os dois começam a transar as escondidas dentro da empresa em uma dinâmica esquisita e muito duvidosa. Até agora eu falei sobre decisões criativas que são problemáticas, mas tecnicamente isso aqui também é péssimo. Os protagonistas não criam nenhuma conexão, porque as únicas coisas que interagem entre eles são suas partes íntimas. Eles não conversam, não dividem experiências. Só transam, e a autora espera que um relacionamento lindo saia disso.
Fica tão claro a deficiência deles como casal, que a própria autora viu isso. Quando eles brigam por causa de ciúmes, não existe uma conversa. O nosso mocinho diz que (mais uma tradução livre): "Nós não conseguimos usar palavras, porque as palavras só nos causavam confusão. Mas isso (SEXO)? Isso é o que somos, e se ela me daria essa chance para consertar o que fiz, eu irei fazer". Sim, é isso mesmo, é um casal de 30 anos resolvendo suas pendências com sexo.
Como se não fosse bizarrice o suficiente, lá para o meio final do livro ela descobre que voilá, ele não anda saindo com ninguém desde que eles começaram essa putaria. E sabe o que a nossa mocinha faz? ELA NÃO ACREDITA. Sabe o que é legal dessa situação? Os dois transam sem camisinha desde a primeira vez, e ela nem parece se preocupar com isso. Nem ele. Ele que era conhecido como manwhore (puto). Sim, ela transa sem camisinha com um cara que tem a reputação de ir para cama com qualquer coisa que anda, e não dá a mínima para a usina nuclear que ela pode estar construindo dentro dela.
Tem uma cena que ele ejacula dentro e ela solta um "tô tomando pílula, otário, só para você saber". Olha, não tem condições.
Então, ao fim do livro, ele deixa claro a hierarquia de poder, e a autora finge que esse livro tentou discutir alguma questão mais séria. "Bennet tem a carreira consolidada, mas todos irão pensar que ela transou para chegar onde chegou, é um ambiente muito machista". É uma problemática fraca, porque a autora passou o livro todo reforçando os estereótipos, para no fim querer criar uma narrativa que ela não construiu.
Acho engraçado que essa história tenha vindo de uma mulher, com o público alvo sendo mulheres. Mais engraçado ainda é que esse é um tópico do século passado, mas parece que nada mudou. Bell Hooks, em 1952 (é mole kkkkkkkkkk), falou sobre isso. "Obviamente, o homem é sempre branco, rico e membro das classes dos dirigentes. Esses romances são lidos por milhões de mulheres que gastam milhares de dólares obtidos com muito suor para ler um tipo de literatura que reforça padrões sexistas de comportamento e romantiza a violência do homem contra a mulher".
Não é irônico?
Bebam água, comam frutas, e, pelo amor de Deus, cuidado com o chefe de vocês.