Luis 15/11/2016
O outsider no palco do establishment
A primeira vez que ouvi falar de Mailer foi na metade inicial dos anos 90, quando “O Globo” publicava aos domingos uma página dedicada a livros que, invariavelmente, trazia entrevistas com escritores renomados. Foi ali também que tomei conhecimento, por exemplo, da existência de John Updike, Frederick Forsyth e Vargas Llosa. Mais tarde essa página se transformaria no suplemento Prosa & Verso, recentemente extinto.
Já naquela época, embora demorasse ainda alguns anos para lê-lo, o que aconteceria alguns anos depois com “Os degraus do Pentágono”, já dava para notar o caráter altamente transgressor que o autor conferia à sua vida e obra, uma, indissociável da outra. Beberrão, violento, sem papas na língua (como se vê, Bukowski não está sozinho nesse quesito), Norman Mailer era alguém a ser temido pelo establishment americano. “O Super Homem vai ao supermercado” (Companhia das Letras, 2006, 453 páginas) é um exemplo certeiro de que aqueles que temiam tinham sua dose de razão.
O livro, editado na excelente coleção “jornalismo literário”, conduzida por Matina Suzuki, reúne os famosos artigos frutos das coberturas que o autor fez das convenções republicanas e democráticas da década de 60, notadamente, a democrata de 1960, que apontou Kennedy como o candidato do partido. O título original daquela matéria, publicado na revista Esquire pouco antes da eleição, virou um clássico e batizou o livro, história brilhantemente contada no posfácio de Sérgio Dávila.
A bem da verdade é melhor que se diga que Mailer não faz essencialmente jornalismo, nem mesmo na modalidade “literário”, mote da coleção e xodó de nove entre dez coleguinhas, inclusive esse que vos escreve. Ao jornalista cabe o mínimo de explicação, de segurar o leitor pela mão e, sem ser tatibitate, jogar luz sobre os fatos. Norman praticamente não faz isso. Usa o ambiente singular dos subterrâneos da política americana como pano de fundo para suas teses carregadas de metáforas. É romance, puro e simples, só que sem ficção. Não que isso seja ruim, pois o talento do escriba se impõe a qualquer preço, mas que pode contrariar as expectativas de leitores que não estejam familiarizados com o processo de escolha do Presidente dos Estados Unidos e dos aspectos históricos das convenções abordadas. Apesar da boa quantidade de notas do tradutor, convêm recomendar leituras prévias que permitam entender aquele contexto.
Por outro lado, talvez o tipo de jornalismo que mais se aproxime desses textos de Mailer seria o chamado estilo “gonzo”, em que o repórter não se limita a ser observador da cena, ele dela participa, não raro como protagonista. Escrevendo na terceira pessoa, o autor descreve a sua (intensa) atuação principalmente nos eventos relatados no “cerco de Chicago” que trata da convenção democrata de 1968, última reportagem do livro. Mailer discursa, participa de manifestações, briga com policiais e por fim é preso. Mais gonzo impossível.
Em tempos de Donald Trump é inevitável o exercício de imaginar como o velho escritor, morto em 2007 aos 84 anos, estaria reagindo e escrevendo sobre os instigantes caminhos da “maior democracia” do mundo. “O Super Homem vai ao supermercado” nos dá muitas dicas.