Krishna.Nunes 20/03/2021O tempo aqui é de sobrevivênciasEm 1964, a Frente de Libertação de Moçambique entrou em guerra contra as forças armadas de Portugal pela independência do país. Depois de anos de batalhas, Moçambique conseguiu sua libertação, em 1975. Nesse ponto, a nação estava devastada e economicamente arrasada. Com a conquista da independência, a Frente tentou implantar melhorias na saúde, educação, agricultura e outras áreas, mas os planos não surtiram efeito. A crise acabou por deflagrar uma guerra civil que durou mais 16 anos e matou 16 milhões de pessoas. É um ano depois desse conflito que se passa o romance.
No vilarejo fictício de Tizangara, os soldados pacificadores da ONU começam a explodir espontaneamente e sem explicação, e tudo o que resta de seus corpos pulverizados é o pênis. Nesse ponto, Moçambique era uma nação prestes a explodir a qualquer momento. O longo período de conflitos deixou para trás tanto minas terrestres quanto minas metafóricas, que representavam os conflito sociopolíticos e todas as dificuldades da população. Numa nação em busca de descobrir sua própria identidade, a explosão dos estrangeiros seria uma espécie de vingança daquela terra.
Ninguém poderia definir melhor do que o próprio autor:
"O último voo do flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência - a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores. [...] É uma resposta pouca perante os fazedores de guerra e construtores de miséria. Mas é aquela que sei e posso, aquela em que apostei a minha vida e o meu tempo de viver."
A língua portuguesa é usada de maneira peculiar, cheia de palavras inventadas, e algumas que existem mas são tomadas de empréstimo, ganhando outros significados. Isso simula, segundo Mia Couto, a maneira como os próprios moçambicanos encaram o português, que para a maioria da população é a segunda língua.
Esta obra mescla fantasia e realidade num cenário em que mulheres representam a história do país através do sobrenatural, dos mitos e das tradições locais. É um brado contra o colonialismo, a guerra, a corrupção e o abuso de poder, mas ao mesmo tempo uma ode à crença, à espiritualidade, e especialmente à solidão. Tem sabedoria distribuída a conta-gotas através dos aforismos e provérbios inventados que abrem cada capítulo e um final bonito e comovente.
Um livro sobre a manutenção de uma ordem disfarçada de paz. Ordem que permite aos europeus continuarem sendo os patrões e prova que antigos colonizados podem ser governados.