Carina 11/09/2013
Não é dos melhores, mas é do Mia Couto
A narrativa descentralizada, que se passa em épocas e locais distintos e apresenta diferentes protagonistas, é interessante do ponto de vista técnico, mas deixa a desejar ao leitor.
A variedade de histórias faz com que seja mais difícil acompanhar o ritmo dos acontecimentos ou se permitir cativar pelos personagens. Alguns trechos fogem a essa regra, mas justamente por ser uma obra longa, é difícil que o escritor mantenha o mesmo fôlego no mesmo nível durante toda a trama.
A boa escrita de Mia Couto, contudo, é a que sustenta o livro, mesmo que ele não seja tão plenamente satisfatório quanto os outros do autor.
Trechos:
A melhor maneira de fugir é ficar parado.
A mulher regressava à sua condição de esposa: retirou-se, convertendo-se em ausência. Lá fora, ela se dedicaria à sua mais antiga vocação: esperar.
Nenhum sonho se pode contar. Seria precisouma língua sonhada para que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só pode ser contado num outro sonho.
Lázaro sempre dizia que não resolvia problemas. Ele dissolvia os problemas, que é uma forma superior de prestar ajuda.
A vida, para ele, era um rio comportado. A felicidade era o prenúncio da inundação.
Eis a nossa sina: esquecer para ter passado, mentir para ter destino.
A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa.
O que faz uma igreja é o silêncio mora lá dentro.
Quem parte treme, quem regressa teme. Tem-se medo de se ter sido vencido pelo Tempo, medo de que a ausência tenha devorado as lembranças. A saudade é um morcego cego que falhou o fruto o mordeu a noite.
A casa da infância é como um rosto de mãe: contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o Tempo.
As pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o tecto.
A casa tem nome? E que nome tem a pedra? (...) Deram-nos nome como um modo de nos dizerem que não temos eternidade.
A vida são golpes, costuras e pontes.
A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores.
A tristeza é uma doença, a alegria é um veneno. Como escolher?
Salvar é uma grande palavra. E amor é uma palavra ainda maior. Grandes palavras escondem grandes enganos.
Uns dizem que nos dividimos entre religiões. Não nos dividimos: repartimo-nos. A alma é um vento. Pode cobrir mar e terra. Mas não é da terra nem do mar. A alma é um vento. E nós somos um agitar de folhas, nos braços da ventania.
O que não é nosso em um mundo em que tudo nos roubam?
Temos medo do pó porque é uma prova de que o Tempo existe e nos vai tornando obsoletos, quase minerais.
Para nós, africanos, o tempo é todo nosso. O branco tem o relógio, nós temos o Tempo.
Mentir não passa de uma benevolência: revelar aquilo em que os outros querem acreditar.
Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma.
Pela dança voltamos ao ventre materno. Foi lá, nesse oculto abrigo, que escutamos o primeiro tambor, executamos os primeiros movimentos de embalo. Foi lá que fomos peixe, fomos água, adormecida onda, incessante maré.
Os ricos enriquecem os pobres empobrecem. E os outros, os remediados, vão ficando sem remédio.
Vícios de historiador: ele não via fotos, ele lia imagens.
A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.
A verdadeira viagem é a que fazemos dentro de nós. Há ondas movidas por anjos, outras empurradas por demônios.
A melhor maneira de não morrer queimado é viver dentro do fogo.
Como é que se sabe se o caracol anda perdido? Se toda a terra é seu caminho...
Quando se faz amor assim, de paixão total, fica-se longe das palavras. O encantamento é uma casa que tem o silêncio por tecto.
Nos últimos meses ele e sua esposa já não davam asas aos lençóis.
Os outros passam a escrita a limpo. Eu passo a escrita a sujo. Como os rios que se lavam em encardidas águas. Os outros têm caligrafia, eu tenho sotaque. O sotaque da terra.
Agora, ela sabia: um livro é uma canoa (...). Tivesse livros e ela faria travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma.
Só tem viagem quem recebe adeuses.
Só há um modo de enfrentar as más lembranças: é mudar radicalmente de viver, decepar raízes e fazer as pontes desabarem.
Quem não tem passado não pode ser responsabilizado. O que se perde em amnésia, ganha-se em amnistia.
Não é fácil sair da pobreza. Mais difícil porém, é a pobreza sair de nós.
Primeiro, perdemos lembrança de termos sido rio. A seguir, esquecemos a terra que nos pertencera. Depois da nossa memória ter perdido a geografia, acabou perdendo a sua própria história. Agora, não temos sequer ideia de termos perdido alguma coisa.
A gente ama alguém que desconhecemos, casa com quem conhece e vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes, temos luas-de-mel, outra vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, porém, são noites sem luar nenhum.
Rasteiro é o rio; e chega ao céu.
Ele seria um crente, sim, no dia em que a igreja morasse dentro de cada um.
A nossa vida inteira é feita de esperas. E, afinal, basta uma palavra, uma só palavra, para sermos deuses, isentos de esperas.
As despedidas são sempre derradeiras.
Não são os grandes traumas que fabricam as grandes maldades. São, sim, as miúdas arrelias do quotidiano, esse silencioso pilão que vai esmoendo a esperança, grão a grão.
A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores. Regressamos a nós, não a um lugar.