Renata CCS 17/06/2020A Bíblia em sua forma irreverente.“A ironia é a expressão mais perfeita do pensamento.” – Florbela Espanca
Em A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA, prêmio Jabuti em 2000 de melhor romance, encontramos os maiores dons do escritor Moacyr Scliar: a fluência narrativa, a imaginação, a leveza e a jocosidade.
Apesar de começar nos tempos atuais, a história deste livro é quase que toda voltada para o passado. Em seu consultório, um terapeuta de regressão de vidas passadas recebe uma moça vinda do interior. Antes de deixar o consultório, ela o entrega um vasto manuscrito, diversas páginas onde relata a sua experiência de regressão, onde descobre ter sido uma das esposas – a mais feia, mas a única capaz de ler e escrever - do rei Salomão, considerado um dos homens mais grandiosos e sábios presentes nos textos bíblicos. É o texto deste manuscrito que compõe o romance.
Na voz da protagonista/narradora, descrita apenas como "a feia", o manuscrito traz a narração da mulher do passado, com aproximações muito entrelaçadas com a história da mulher do presente. Torna-se - devido as importantes relações comerciais do pai, chefe de uma das inúmeras tribos israelitas daquela época - uma das mulheres do rei Salomão, tão logo depois de ter sido alfabetizada às escondidas pelo escriba daquela tribo, que viu na possibilidade de escrever um consolo para a vida solitária que se anunciava para a sua devotada aluna. Mas o casamento arranjado não é bem sucedido inicialmente. Salomão se recusa a consumar a união, tamanha a sua feiura, mas fica encantado com a habilidade inusitada para uma mulher, naquela época, de saber ler e escrever, e a encarrega de escrever a história da humanidade e, em especial, do povo judeu, tarefa destinada anteriormente a uma junta de escribas, mas que falharam miseravelmente na missão.
A Bíblia Sagrada é a maior obra literária já produzida no panorama da história da literatura mundial. Scliar construiu uma fábula sobre a Bíblia, usando a paródia, a sátira, para nos ofertar com novas versões de célebres episódios bíblicos e recriar a corte de Salomão. O bem humorado enredo é recheado de irreverência, malícia e aventura, tudo isso mesclado com a imensa simpatia do escritor pelos preteridos de todas as épocas e lugares. Em seu enredo bem elaborado, misturam-se, sem quaisquer embaraços, o sagrado e o profano, o rebuscado e o chulo, o sublime e o ridículo.
Para mim, a grande sacada do autor foi fazer uma narradora incógnita ganhar uma dimensão maior do que ela mesma, porque ao mesmo tempo representava a si e os tantos anseios de mulheres que, naquela época, e nas que se seguiram, sofriam com a discriminação social e com a repressão de sua sexualidade, e ainda assim, seguia na contramão do padrão da época, sendo senhora de seu pensamento e de suas formas de expressão.
O livro é hilário! Impagável! Fez-me gargalhar diversas vezes, atiçando observadores ao meu redor, que ficaram curiosos a respeito da leitura. É um livro curto, de leitura rápida, o último escrito por Scliar e meu primeiro contato com o autor. Confesso que fiquei impressionada como ele conseguiu falar de vários temas delicados com bastante humor, escrachando na narração. Ele supera a mera aventura e traz muita reflexão, com uma perspectiva humanista acentuada.
Muito, e eternamente recomendado.