Rudy 12/02/2014minha estanteLogo após a renúncia de Bento XVI ao sólio pontifício, era difícil passar por uma livraria brasileira em que o livro O homem que não queria ser papa não estivesse em destaque. O volume ? falo do número das páginas ? por si só chama atenção, pois são quase seiscentas. Na lista dos livros mais vendidos da revista Veja, categoria de não ficção, do dia 3 de abril, o referido livro figurava no terceiro lugar. Um prodígio, levando em conta o nível de popularidade do papa (emérito) alemão em terras brasileiras. Tendo lido o livro vagarosamente, fui tecendo diversas análises do produto que chegou às mãos do público brasileiro. Sendo praticamente o único livro publicado no Brasil sobre o pontificado de Bento XVI depois da renúncia, é importante prestar atenção naquilo que o livro transmite como uma imagem total do pontificado e julgar em que medida ela tem fundamento factual. Para ser mais sucinto, dividirei a minha análise em pontos de análise, pois dada a extensão do volume, torna-se inviável a sua avaliação total: a ideia geral, a construção do texto e a tradução.
I. A ideia geral: No fim das contas, o livro me fez pensar que Bento XVI devia o tempo todo pedir desculpas pelo menos por três fatos: ser alemão, não ser João Paulo II, ter sido eleito papa.
a) O fato de ser alemão. Englisch queria que Ratzinger fosse o redentor das culpas do passado alemão, que "carregasse sobre si as culpas do seu povo", que fosse o Cristo dos alemães. Essa é a contradição fundamental do livro: há momentos em que ele diz que Ratzinger esquece que é o papa, afirmando que sua personalidade e sua origem se impõem sobre o cargo. Noutros momentos pede que fale mais alto sua origem germânica e que ele fale não como papa, mas como alemão, como representante do povo alemão? (O povo alemão o constituiu como tal?). Englisch ora pune Ratzinger por esquecer que é o papa, ora pune o papa por esquecer que é Ratzinger/alemão. Afinal, como Bento XVI devia proceder? Englisch não se decide se devia prevalecer o alemão ou o papa em Bento XVI.
b) O fato de não ser João Paulo II: não é só o fiel comum ou alguns cantores brasileiros que lamentam que Bento XVI não era João Paulo II. O autor do referido livro também. Como assim? Temos um Englisch que duvida de Deus, que o vê fracassar, que vê Bento XVI fracassar (segundo seu ponto de vista), que vê a Cúria fracassar, mas que pouquíssimas vezes viu João Paulo II fazê-lo. Um papa infalível quase em tudo. Sim, é nítido que o autor foi um homem tocado pelo carisma do papa polonês e no seu livro sua admiração transborda a tal ponto de condicionar a sua avaliação do pontificado beneditino. Enfim, o grande erro de Bento XVI, na perspectiva do autor, era não ser João Paulo II. Simples assim. Ele mesmo admite que quando João Paulo II pontificava transformou o Cardeal Ratzinger, em seu livros e matérias no antagonista ideal para o seu grande herói. Até foi tentar pedir desculpas oportunistas com medo de perder o emprego. Mas confiante de que não seria alvo de uma vingança ratzingeriana, porque isso não era próprio da personalidade daquele que ele tanto demonizara, neste livro, que é na verdade um livro de 2011 requentado, ele trata de opor mais uma vez as duas figuras, desta vez fazendo o defunto João Paulo II - ou a viva lembrança do amado papa polonês - o contraste perfeito com papa alemão para a sua narrativa maniqueísta tão ao gosto do consumidor contemporâneo que gosta de ver Bento XVI no lado sombrio da Força.
c) O fato de Bento XVI ter sido papa. Perdi as contas do uso das palavras "desastre", "catástrofe" e assemelhadas. São tantas as vezes que essas palavras aparecem para descrever fatos, situações, gestos, Bertone, discursos, que a impressão que passa do pontificado é a pior possível. Somando-se a um quadro quase ideal do pontificado de João Paulo II, o leitor quase conclui: porque esse homem foi papa? O leitor é quase impelido a reescrever o título: "O homem que não deveria ter sido papa", apesar que o título com que o livro foi publicado no Brasil não é do original alemão.
II. A construção do texto: O texto está repleto de elucubrações, de interrogações que o próprio Englisch se faz. Ele mais parece um diário, com autênticas notas pessoais, brigas com Deus, inclusive pela incompreensão pela morte de um amigo. Muitas vezes o leitor se vê perdido, depois de tantos parágrafos sem falar de Bento XVI. Como um bom texto jornalístico (se o fosse), deveria primar por recolher e apresentar, ao menos, posições distintas, de teólogos e vaticanistas, sobre os fatos. Não. Só há um ponto de vista. Claro que isso exigiria uma longa coleta de dados, um livro planejado por anos e escrito com vagar. Mas esse não é o caso aqui.
III. Problemas de tradução: ao menos um revisor versado, minimamente, em teologia ou nos jargões da Igreja - bastava um coroinha, quem sabe - que lesse o texto com um pouco de atenção, veria alguns erros gritantes na tradução. Confesso que em alguns momentos o texto me fez rir. Ou melhor, a tradução. Onde deveria haver mosteiro cisterciense, lá estava o "mosteiro Circence" (p. 263). Onde deveria estar escrito sacerdote trapista, estava "trapezista" (p. 266). Uma verdadeira palhaçada (mais risos!).