Rodrigo1001 02/08/2023
Singela polifonia (Sem Spoilers)
Título: Trash
Título Original: Trash
Autor: Andy Mulligan
Editora: Cosac Naify
Número de Páginas: 224
Romance policial escrito em muitas vozes por crianças pobres que vivem num lixão, começo falando sobre a edição em si.
Com um projeto gráfico primoroso (como era de se esperar sendo um dos livros da saudosa Cosac Naify), Trash foi impresso em papel pólen soft de excelente gramatura e qualidade, vencendo com folga qualquer gordura que seus dedinhos possam ter ou qualquer mancha de oxidação que o tempo queira teimar em trazer.
Cada capítulo é narrado por um personagem diferente, então cada personagem é representado por uma tipologia/fonte diferente - são impressionantes 18 fontes distintas no total! Como se isso não bastasse, para criar as imagens da capa e das aberturas de capítulo, lixo de verdade foi colocado na máquina de xerox. Assim, à medida que o leitor avança pelo livro, as imagens vão se sobrepondo e as aberturas vão ficando cada vez mais escuras. Os títulos também foram impressos em papel, amassados e depois xerocados.
Como eu disse, um primor!
Partindo para o conteúdo, Trash é um romance polifônico com vozes plenivalentes. Nesse tipo de narrativa, os personagens não são simples objetos do autor, mas, sim, sujeitos - e sujeitos com direito a expressar opiniões e a desenvolver uma concepção filosófica plena. Dando voz a quase todos os personagens, o livro entrega ao leitor a representação de diferentes ideologias e visões de mundo, inseridas em um contexto sócio-histórico recortado no universo ficcional da narrativa.
É muito bacana! A narrativa é entregue de um personagem a outro, como na passagem de um bastão, indo e voltando e nunca se fundindo em um único narrador. São várias vozes que nos levam pela vida de três garotos, três amigos, que comungam na plena pobreza.
Das descrições do lixão onde vivem ao carisma de seus protagonistas, Mulligan define seu romance em um país fictício do terceiro mundo (Índia ou Filipinas, talvez?) em uma sociedade claramente distópica, onde parece não haver classe média, apenas os ricos e os desafortunados. Os pobres vivem nos lixões da cidade, onde reviram montanhas de lixo diariamente em busca de comida, roupas e qualquer item de valor para vender. É em uma dessas pilhas que Raphael, um menino de cerca de 13 anos, descobre um mapa, uma carteira e uma chave, todos itens de grande valor, grande mistério e grande perigo. E é em cima dessa descoberta que o thriller se desenrola.
Intrigante, corajoso e honesto, Trash permanece com você por muito tempo depois que a última página é lida. Para qualquer pessoa com adolescentes em casa, este livro é uma leitura obrigatória. Ele convida à conversa sobre corrupção, confiança e, claro, pobreza. É um alerta para todos nós que o lixão de Behala não é realmente um lugar fictício, mas que existe até mesmo em nossos próprios quintais. Meninos vão adorar pela ação e pelas atitudes rebeldes dos protagonistas. Meninas vão gostar porque evoca compaixão. Pais e professores vão adorar as lições que nos lembram, aquelas de determinação, amizade e perseverança.
E você vai adorar por ter um belo desenvolvimento e um final singelo, quase idílico, e também por reforçar a empatia e a auto-percepção, elementos tão em falta na sociedade de hoje.
Em resumo, literatura destinada essencialmente para público jovem, mas que acaba tendo apelo a todas as idades.
Leia e me diga, ok?
Leva 4 de 5 estrelas.
Passagem interessante:
“Aprendi talvez mais do que qualquer universidade jamais poderia me ensinar. Aprendi que o mundo gira em torno do dinheiro. Existem valores, virtudes e moral; existem relacionamentos, confiança e amor - e tudo isso é importante. O dinheiro, porém, é mais importante e está pingando o tempo todo, como água preciosa. Alguns bebem profundamente; outros têm sede. Sem dinheiro, você murcha e morre. A ausência de dinheiro é a seca em que nada pode crescer. Ninguém sabe o valor da água até viver em um lugar seco.”