stsluciano 09/05/2013
Em dos melhores livros que já li.
“A Arte de Ouvir o Coração” é um livro que já impressiona pelo projeto gráfico da capa*. Não há como deixá-lo passar despercebido: diversos insetos tomam conta da capa que, em mãos, ainda nos surpreende por serem estes insetos, na metade de baixo, em verniz, e na superior em alto relevo. Gostei muito, acho que é uma das mais belas capas que já vi, mas ela casa com o título do livro? Sim, faz todo o sentido.
No livro, que marca a estreia do autor, o alemão Jan-Philipp Sendker, escrevendo em língua inglesa, somos guiados por Julia, que parte em busca de seu pai, um proeminente advogado que desaparecera sem deixar rastros após viajar em segredo para a Birmânia. Para aumentar o mistério, sua família – inclusive sua esposa – pouco sabem de sua juventude no país, sendo esse um dos poucos assuntos acerca dos quais ele não aceita ser questionado.
Como imigrante, Tin Win, o pai de Julia, se diferenciava dos demais americanos por ter mantido um estilo de vida discreto, apreciando música e se portando de forma que os outros achariam peculiar, sem, no entanto, dar qualquer mostra à sua família de que um dia poderia desparecer.
Julia decide, quatro anos após o desaparecimento, partir em busca de seu pai, saber o que aconteceu. Na Birmânia, é abordada por um velho que diz conhecê-lo, e, mesmo com ela relutando em acreditar, lhe conta uma história, e ela demora em aceitar sobre quem se trata.
O livro alterna constantemente a narrativa, mesclando as memórias de Julia, e sua busca pelo pai desaparecido, com os relatos do velho, chamado U Ba. Enquanto ela narra a história em primeira pessoa, U Ba utiliza a terceira, demarcando, claro, que tomou conhecimento dela por outra pessoa. Já questionei muito esse tipo de estrutura em outros títulos, mas aqui ela se dá de forma perfeitamente harmônica, e torna o livro agradável de ser ler, os fatos não acontecem precipitadamente, e, ainda, as inserções narrativas de Julia entremeadas às de U Ba nos permite acompanhar o que ela pensa sobre o que lhe vai sendo contado.
E a história impressiona. Tin Win, um garoto que é personagem da narrativa de U Ba, nasceu em uma data propícia para sortilégios – os birmaneses são supersticiosos e acreditam fervorosamente na influência dos astros em suas vidas – então seus pais ficam preocupados com seu futuro. Quando por fim algo ruim acontece, sua mãe compreende que os sinais já presentes em seu nascimento foram confirmados, e acaba abandonando-o. Penalizada, Su Kyi, uma vizinha, passa a cuidar dele como se fosse seu filho.
Tin Win sempre fora uma criança peculiar, isolada, dada a observar, sozinho, a natureza, então quando ele perde a visão, Su Kyi pensa consigo mesma que não sabe ao certo se ele ficou cego devido a uma doença ou se apenas se recolhera a um recanto ainda mais profundo de sua personalidade, onde ninguém mais conseguiria alcançá-lo.
O modo como ele passa a perceber o mundo à sua volta, através, principalmente, da audição, é o que dá título ao livro, e se complementa quando ele conhece Mi Mi.
Mi Mi é uma garota que nascera com um problema ortopédico que a impede de caminhar ereta. Dona de uma personalidade altiva e alegre, além de uma voz belíssima, é uma das personagens mais marcantes com a qual já tive contato em um livro, e seu encontro com Tin Win um “casamento” perfeito.
Ele não pode ver; ela, andar. Juntos têm todo o mundo diante de si.
"(…) Ela não era um peso. Era necessária".
– Página 147
Um dos pontos positivos na construção dos personagens do livro é que o autor não faz deles heróis sem pontos fracos, nem, tampouco, portadores de necessidades especiais que são dignos da nossa profunda pena e admiração. Ao contrário, Tin Win em nenhum momento quer ser visto como inválido, e Mi Mi, apesar de ter de se locomover rastejando, mantém uma postura e asseios impressionantes, fazendo com que seja respeitada por todas as pessoas que a conhecem.
E não são isentos de falhas. Até aprender a usar seus novos sentidos, mais aguçados pela necessidade de compensarem a perda da visão, Tin Win cai e se machuca – principalmente em seu íntimo – diversas vezes; e Mi Mi, por sua vez, inveja silenciosamente as outras crianças que podem andar.
É uma bela história de amor, e, como tem de ocorrer nas melhores delas, assume na segunda metade do livro um tom melancólico, um sentimento de perda que vai aumentando a cada página, e segue até o desfecho. Esses trechos me fizeram questionar Tin Win, suas atitudes, sua passividade, permissividade e inércia quando não age, não busca o que todos os leitores que tiverem o livro em mãos acreditarão ser o natural, a coisa certa a se fazer.
Por outro lado, em um dos diversos momentos nos quais parei com os livros em mãos, pensando a respeito do que havia lido, me veio a noção de que nada é da maneira que esperamos para nossas próprias vidas, ainda mais nos casos onde não somos donos de nossos caminhos ou estamos presos a tradições, sentimentos de dever e subserviência aos quais apenas uma pessoa tão boa quanto Tin Win poderia se sujeitar e não se rebelar.
A última parte – o livro é divido em três – é bela, o final, tocante, terno, mas tenho comigo que ela não aplaca todas as perdas, as falhas; e fica aquela sensação de que os personagens deixaram tanto em aberto que jamais conseguiriam suprí-las, mesmo que se esforçassem muito.Tal qual na vida real.
Talvez por isso o livro tenha mexido tanto comigo.
**Resenha originalmente publicada aqui: http://www.pontolivro.com/2013/05/a-arte-de-ouvir-o-coracao-resenha-126.html