Feu Franco de Yamesh | @feu_franco 04/07/2020
Novembro de 63
Na manhã do último domingo fui na padaria do bairro, na noite anterior havia terminado esse livro e (acreditem) por coincidência, quem encontro na fila do pão de queijo? Sim, ele mesmo. Quando o vi de costas não parecia real. Aquele homem alto de cabelos brancos e desgrenhados, já seria raro por aquelas bandas, mas quando ele se virou e ajustou os mini-óculos quadrados à frente das riscas finas que eram seus olhos, o meu semblante não me obedeceu e ficou travado entre o assustado e o incrédulo. Era ele sim, Stephen King.
Eu não quis tentar descobrir por qual motivo ele estaria ali, minha primeira reação foi tietar com uma abordagem desengonçada e vexatória para alguém da minha idade.
— Senhor King, tudo bem? — gaguejei.
Ele se virou apertando tanto seus lábios que eles quase sumiram parecendo um corte de estilete. Um murmúrio do fundo da sua garganta foi o que ouvi enquanto ele me investigava de baixo a baixo.
— Posso tirar uma foto com o senhor? — implorei.
Ele fez que sim e enquanto eu preparava o meu Xiaomi Redmi Note 7, aproveitei para falar do que me atormentava:
— Li ontem seu livro e que história maravilhosa… — Quando me preparei a linha fina da sua boca estava quase se expandindo num sorriso. Então continuei (não deveria ter feito isso).
— Aquela enfermeira, não fez muito sentido, o Al volta com um câncer diagnosticado apenas no passado e já tem uma enfermeira cuidando dele?
Senhor King arregalou os olhos e ajeitou a postura.
— Você percebeu? — sussurrou ele.
Fiz que sim com a cabeça e isso me deu confiança. Não segurei mais minha tagarelice.
— E que barrigada, seu King. Dos 30% aos 65% quase não acontece nada.
— Eu queria contar a história de Jodie, gosto de cidadezinhas do interior.
— Também gosto — concordei —, mas aquilo foi demais, muita coisa e muito personagem que não contribui… Ah, mas a Rosette é maravilhosa, soltei uma gargalhada na fala dela.
Ele mostrou os dentes numa risada descontraída.
— Outra coisa: por que cargas d’água você me apresenta o Jake Eppings em uma narrativa de primeira pessoa por 68% do livro e, do nada, do nada mesmo, uma cena é descrita em terceira pessoa e mais a frente outra bem pequena também? Isso me confundiu.
O riso do rei do suspense se transformou quase dizendo por si só que ele tinha essa permissão, ainda assim King fez questão de verbalizar:
— Licença poética, amigo. Eu posso.
“Ele tem razão”, pensei.
A fila andou mais um pouco e ele deu dois passos curtos, eu acompanhei do lado, virei de costas e tirei uma self com King acima de mim e o teto como fundo.
— Você é escritor? — ele perguntou e isso me deixou nas nuvens.
— Sim — respondi com um sorriso de orelha a orelha. — Tenho um livro que identifiquei tantas coisas parecidas com a sua obra. Por exemplo: Narrado em primeira pessoa, tem dois mundos, algumas escolhas narrativas parecidas e várias, várias (mas não tantas quanto você) referências à cultura pop.
Ele pareceu ficar desconfortável com minha tagarelice empolgada.
— Três pães de queijo por favor — ele falou para a atendente. — Que legal, e seu livro tem nome?
— Yamesh — falei e por dentro eu pensava “caracoles! Tô falando do meu livro para Stephen King”.
— Vou procurar saber mais.
— Mas, seu King, não chega nem aos pés dos seus tá? Eu vou ter que comer muito arroz com feijão pra fazer o que você faz com suas histórias.
— Se você está feliz e tenta fazer outras pessoas felizes com suas palavras, isso é o mais importante — ele disse e senti que parecia ler meus desejos mais profundos. Arrepiei com isso.
— Obrigado — falei. — Ah, e outra coisa, seu King, o final é espetacular. Adorei o Clímax.
— Obrigado — ele me imitou. Pegou o saco de papel e saímos porta afora.
Eu tinha outra coisa para falar, mas não tive coragem. Era algo relacionado com a Sadie nunca ter tido uma experiência sexual e mesmo assim saber como identificar o ápice do ato. Deixei quieto e enquanto ele se distanciava lentamente, eu postava aquela foto em meu Instagram. Fui embora para casa pensando “eu falei com ele, eu falei com ele sobre meu livro” e esquecendo o que tinha ido fazer na padaria.
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