Naty 15/05/2017
Um livro que me chocou, logo de início, primeiramente pelo tema que trata e, depois, mas não menos importante, pela forma como aborda.
Li esse livro para fazer o vestibular UFU e achei ele bem interessante. Ele revela muito do que qualquer pai ou mãe de filhos com síndrome de Down ou qualquer outro tipo de dificuldades especiais pensam. As dificuldades são muitas e a forma como cada pessoa lida com a notícia é sempre diferente. No caso do livro, o pai estava totalmente despreparado para isso e, consequentemente, rejeita o filho torcendo até mesmo para que ele morra.
Na maior parte do livro, ele demonstra uma imensa vontade de que o filho seja normal, desapareça da vida dela e coisas desse tipo. Até tenta um treinamento que forçaria filho a desenvolver capacidades motoras e de linguagem.
E é aí que você que está lendo essa resenha fala: Vixe! E isso é livro que eu queira ler? Um pai que odeia um filho só porque ele é diferente? Um pai que quer mudar o filho e melhorar suas capacidades só porque não as acha compatíveis com o normal? O que é ser normal, afinal?
E é aí, também, que você deve compreender que o autor conseguiu demonstrar. Ele demonstra o que qualquer pessoa, numa cultura como a nossa, pensaria. Ninguém deseja ter uma criança assim. Ninguém está copletamente pronto.
Em resumo, gostei bastante do livro. Não vou dizer que o amei em sua totalidade, mas ele é bem realista e isso é mais do que inovador. Além de que a linguage que ele adota e as divagações que o pai, na voz de um narrador onisciente, faz são bem interessantes. Isso não quer dizer que eu concorde com todas as suas conjecturas, mas que ele tem bagagem para falar, tem. Ele cita quase todos os livros clássicos da istória e, em cada uma de suas argumentações, dá para se perceber a mistura de argumentos com os de outros autores consagrados. Ou seja, não é uma leitura fácil para quem não tem bagagem. É uma leitura complexa e que exige interesse. É um livro, realmente, bem interessante.
Percebi também uma crítica do autor aos modos dos médicos, pois, na época, eles agiam de maneira mecanica e não ajudavam os pacientes em seus embates pscicológicos e dificuldades em encarar problemas como o de ter um filho com Síndrome de Down. Eles apenas diziam características provenientes dessa mutação do cromossomo 21 e só.
Outra coisa muito interessante é o crescimento conjunto entre pai e filho. Ambos não se encaixam perfeitamente à sociedade, ambos rompem padrões sociais e, ao longo do livro, eles parecem se unir em seus embates contra essas barreiras. Relação entre pai e filho que, de início não era nada boa, mas vai amadurecendo e criando laços inseparáveis. O que gera, enfim, o filho eterno.
A seguir, apresentarei alguns trechos que gostei:
"Súbito, a porta se abre e entram os dois médicos, o pediatra e o obstetra, e um deles tem um pacote na mão. Estão surpreendentemente sérios, absurdamente sérios, pesados, para um momento tão feliz — parecem militares. Há umas dez pessoas no quarto, e a mãe está acordada. É uma entrada abrupta, até violenta — passos rápidos, decididos, cada um se dirige a um lado da cama, com o espaldar alto: a mãe vê o filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mas ninguém sorri. Eles chegam como sacerdotes. Em outros tempos, o punhal de um deles desceria num golpe medido para abrir as entranhas do ser e dali arrancar o futuro. Cinco segundos de silêncio. Todos se imobilizam — uma tensão elétrica, súbita, brutal, paralisante, perpassa as almas, enquanto um dos médicos desenrola a criança sobre a cama. São as formas de um ritual que, instantâneo, cria-se e cria seus gestos e suas regras, imediatamente respeitadas. Todos esperam."
" Cada coisa que há no mundo! Crianças cretinas — no sentido técnico do termo —, crianças que jamais chegarão à metade do quociente de inteligência de alguém normal; que não terão praticamente autonomia nenhuma; que serão incapazes de abstração, esse milagre que nos define; e cuja noção do tempo não irá muito além de um ontem imemorial, milenar, e um amanhã nebuloso. Para eles, o tempo não existe. A fala será, para sempre, um balbuciar de palavras avulsas, sentenças curtas truncadas; será incapaz de enunciar uma estrutura na voz passiva (a janela foi quebrada por João estará além de sua compreensão). O equilíbrio do andar será sempre incerto, e lento; se os pais se distraem, eles engordarão como tonéis, debaixo de uma fome não censurada pela sensação de saciedade, que neurologicamente demora a chegar. Tudo neles demora a chegar. Não veem à distância — o mundo é exasperadamente curto; só existe o que está ao alcance da mão. São caturros e teimosos — e controlam com dificuldade os impulsos, que se repetem, circulares. Só conseguirão andar muito tempo depois do tempo normal. E são crianças feias, baixinhas, próximas do nanismo — pequenos ogros de boca aberta, língua muito grande, pescoços achatados, e largos como troncos. Em poucos minutos — ele não pensou nisso, mas era o que estava acontecendo — aquela criança horrível já ocupava todos os poros de sua vida."
"Não há mongoloides na história, relato nenhum — são seres ausentes. Leia os diálogos de Platão, as narrativas medievais, Dom Quixote, avance para a Comédia humana de Balzac, chegue a Dostoiévski, nem este comenta, sempre atento aos humilhados e ofendidos; os mongoloides não existem. Não era exatamente uma perseguição histórica, ou um preconceito, ele se antecipa, acendendo outro cigarro — o dia está muito bonito, a neblina quase fria da manhã já se dissipou, e o céu está maravilhosamente azul, o céu azul de Curitiba, que, quando acontece (ele se distrai), é um dos melhores do mundo — simplesmente acontece o fato de que eles não têm defesas naturais. Eles só surgiram no século XX, tardiamente. Em todo o Ulisses, James Joyce não fez Leopold Bloom esbarrar em nenhuma criança Down, ao longo daquelas 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamente. O cinema, em seus 80 anos, ele contabiliza, forçando a memória, jamais os colocou em cena. Nem vai colocá-los. Os mongoloides são seres hospitalares, vivem na antessala dos médicos. Poucos vão além dos... quantos anos? Ele pensou em 10 anos, e calculou a própria idade, achando muito; talvez 5, fantasiou, vendo imediatamente uma sequência rápida de anos, os amigos consternados pela sua luta, a mão no seu ombro, mas foi inútil — morreu ontem. Sim, não resistiu. Voltariam do cemitério com o peso da tragédia na alma, mas, enfim, a vida recomeça, não é? Um sopro de renovação — como se ele tivesse existido apenas para lhes dar forças, para uni-los, ao pai e à mãe, sagrados. "
"Havia muita coisa em jogo, é verdade — mas o grande motor era a vergonha. A vergonha regula do catador de lixo ao presidente da República. É uma chave poderosa da vida cotidiana: esses políticos deviam é ter vergonha na cara!, nós dizemos todos os dias, o que é um mantra que nos redime e nos tranquiliza. Como se fosse a mesma coisa, agora ele sentia vergonha, embora a palavra, por algum mistério, não lhe aflorasse, o som da palavra em sua simplicidade, como se alguma coisa tão absurdamente simples, vergonha, não pudesse fazer parte de sua vida (só os medíocres sentem vergonha, ele recitava) — o que chegava à pele, o que queimava, era o sentimento insuportável de alguma coisa errada. E alguma coisa errada não com o filho, mas com ele mesmo. A criança dorme, a mãe agora também dorme, e ele acende outro cigarro, no escuro. A mulher tem razão: ela acabou com a vida dele, ele suspira, concordando, e sente-se misteriosamente mais tranquilo."
"Nada do que não foi poderia ter sido. Não há outro tempo sobre esse tempo.
Amanhã e amanhã é uma escada curva. Ninguém abre a porta ainda em modelo. Hoje ouvimos os ratos roendo o outro lado. Ninguém chegou lá, porque hoje é aqui.
Mas o sonho insiste o sonho transporta o sonho desenha uma escada reta.
Quando cortas o pão o depois-de-amanhã não te interessa. Mesmo que sabes: todas as forças
estão reunidas para que o dia amanheça."
" o jovem, que jamais concluiria o segundo grau, lhe diz enrolando a língua: Você é tão inteligente, e não conseguiu nem fazer um filho direito. Ele ouve uma risada, que ainda faz eco. "
" A médica não sorri. Ela é uma porta-voz impessoal da ciência, e tem a obrigação de dizer as coisas exatamente como elas são, e as coisas não são boas, porque não são normais e fogem de todas as mediçõespadrão em todos os aspectos: uma trissomia do cromossomo 21, que se manifesta, agressiva, em cada célula do bebê. É isso. Levem o seu pacote, ela parece dizer, quando enfim sorri o seu sorriso profissional. Dizer as coisas como elas são: não reclame, ele se vê pensando. Você quer ouvir uma mentira, e isso a médica não tem para dar. Você quer um gesto secreto de piedade, disfarçado pela mão da ciência, e isso também está em falta. Há séculos as funções da vida já se separaram todas, cada uma em sua especialidade. O que ela tem a dizer, além de descrever cientificamente a síndrome, é o que você pode fazer pela criança, mas não espere muito disso; no máximo você vai tornar as coisas suportáveis. Você não é nem o único, nem o último. "
"Ainda não é exatamente um filho. O pai não sabe disso, mas o que ele quer é que aquela criança trissômica conquiste o papel de filho. A natureza é só uma parte da equação. À noite, no bar, o pai se transfigura sob a cerveja e o cigarro, num otimismo romanesco. Decorou a sequência do amadurecimento neurológico, que passa a ter para ele o caráter de uma fórmula matemática — o túnel da linha de produção —, e explica didaticamente, a quem quiser ouvir, como em pouco tempo, talvez dois ou três anos, o seu filho será uma criança normal. Fala com a mesma compulsão obsessiva com que, às vezes, volta a descrever aspectos da perfeição do jogo de xadrez, em que foi viciado num curto período da adolescência, até que dele se livrasse para sempre depois de uma incontrolável crise de choro diante de uma derrota. É claro — ele explica, sentindo a falta de um quadro-negro, naquela zorra do bar, para melhor eficiência da explicação — que você tem de recuperar o atraso neurológico, por meio de sobre-estímulos. Ora, se a criança normal precisa ouvir apenas dois ou três sons agudos para dominar a reação instintiva a esse som, uma criança deficiente precisará ouvi-lo trezentas vezes até que a natureza recupere o que perdeu. Pois até comprei uma flauta doce, ele confessa em tom de quase ameaça, e passo o dia tirando umas notinhas perto do Felipe. Os sons agudos, percebe? — e ele abre outra cerveja. Veja aquele sujeito andando ali — confira a relação de movimentos entre pernas e braços. Parece simples. Pois na criança mongólica você precisa implantar esse padrão de movimentos, para despertá-la da névoa neurológica. É preciso compensar a falta da natureza; consertar o defeito de origem. "
" Teria de achar a palavra certa para explicar, as pessoas não sabem — talvez dizer “você viu meu filho? Ele é um menino com problema”, ou “ele é meio bobo”; ou, ele é “deficiente mental”, e tudo aquilo não corresponde nem ao filho nem ao que ele quer dizer para definir seu filho; ele é uma criança carinhosa mas meio tontinho, talvez assim ficasse melhor; não pode dizer “mongoloide”, que dói, nem “síndrome de Down” — naquela década de 1980, ninguém sabe o que é isso. "
"O choque de sair da escola das crianças normais para a primeira escola especial, quando a diretora devolveu o filho para ele. Não queremos seu filho — para ele, há escolas especiais, que têm treinamento e condições de tratar dele. Nós não temos. Para o pai, levá-lo à escola especial foi reviver aquela sala da clínica do Rio, quando ele percebeu pela primeira vez que seu mundo de referências seria definitivamente outro. A criança
também sentiu a diferença — nos primeiros meses de escola especial, o menino reagiu pelo isolamento e pelo silêncio. Não se reconhecia naqueles outros em torno dele. Durante algum tempo terá ainda uma relativa dificuldade para conviver com os seus iguais, aquele conjunto disparatado de casos a um tempo semelhantes e muito diferentes que partilham a escola com ele. "
"Aqui e agora: voltando para casa sem o filho, o mesmo filho que ele desejou morto assim que nasceu, e que agora, pela ausência, parece matá-lo."