Leila de Carvalho e Gonçalves 16/07/2018
Gigantesco e Desafiador
Gigantesco é um adjetivo que cai sob medida para "Graça Infinita", segundo romance de David Foster Wallace (1962-2008), cujo título se refere a um estranhíssimo objeto: um filme com fama de ser tão divertido quanto letal, isto é, seus espectadores ficam vidrados na tela até a morte. Trata-se da magnum opus ou o grand finale de um ex-cientista, metido a cineasta, dotado de um bizarro senso de humor.
Quanto ao livro, ele é um bom exemplo de literatura experimental e suas sequelas físicas não vão além de um torcicolo causado por 1100 páginas que exibem o dobro de palavras usualmente empregadas, afora 388 notas, imprescindíveis para o entendimento da história. Uma odisseia que requer um leitor experiente e um bom dicionário, apesar de algumas palavras serem invenções do próprio Wallace.
Por sinal, considerado um dos escritores mais talentosos de sua geração, DFW é capaz de abordar diferentes gêneros e estilos com raro virtuosismo. Infelizmente, aos 33 anos, ele se enforcou durante uma crise de abstinência provocada pela supressão de um antidepressivo que suspeitava ser a origem de um bloqueio criativo.
Publicado originalmente em 1994, esse romance levou vinte anos para ser lançado no Brasil e Caetano Galindo levou cerca de dois, para apresentar uma impecável tradução. Um trabalho hercúleo, já que se trata de um compêndio enciclopédico criado sob o parâmetro de "quanto maior, melhor". Nada mais nada menos do que uma confusão psicodélica de tudo o que surgia na cabeça de Wallace com direito a inúmeras personagens, bons casos, piadas, monólogos além de trechos desafiadores que assemelham-se a delírios alucinógenos.
Sua história é ambientada num futuro onde Estados Unidos, México e Canadá passaram a ser um único país, a Organização das Nações da América do Norte (ONAN). Dominada pelo comércio, a região apresenta até os anos patrocinados por marcas famosas, por exemplo, o "Ano da Fralda Geriátrica Depend" centraliza a maior parte da trama. A própria Estátua da Liberdade virou garota-propaganda e, ao invés de erguer a tocha, exibe produtos que vão de hambúrguer a sabão em pó.
As estranhezas não param por aí, rebanhos de hamsters selvagens cortam o país e a Nova Inglaterra foi transformada num lixão de residuos tóxicos produzidos por um novo tipo de energia, a fusão anular. Indubitavelmente, a população de Quebec não anda satisfeita com a incômoda vizinhança e um grupo separatista radical está disposto a obter a cópia mestre do tal filme para transformá-lo numa arma capaz de dizimar toda a população ianque.
Desaparecido sem deixar vestígios, o paradeiro desse cartucho acaba envolvendo a própria família do cineasta que, há poucos anos, resolveu explodir a cabeça num forno de micro-ondas. Dela, fazem parte a viúva, Avril Incandenza, proprietária da "Academia de Tênis Enfield", e seus três filhos: Orin, um ídolo do futebol americano, Mario, um jovem seriamente deformado, e Hal, candidato a futuro ídolo do tênis, se não for pego em algum exame antidoping...
Com várias subtramas, uma boa parte acontece na "Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool". Aí, quem rouba a cena é Don Gately, um ladrão viciado em narcóticos orais que frequenta os "Alcóolicos Anônimos" e tem sérias dúvidas sobre a existência de um Ser Superior.
Com uma estrutura complexa, esse livro não é indicado para o leitor tradicional, acostumado com conexões narrativas e histórias com começo, meio e fim. Se esse não for o seu caso, aceite o desafio de encarar um romance genial, laborioso e viciante. Aliás, o vício, suas causas e consequências são o fio condutor dessa jornada labiríntica que também aborda a tênis, entretenimento, publicidade, cinema, relações familiares e políticas. Boa sorte!