Vilto 24/05/2013
O fascinante A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves, de Joca Reiners Terron
“Foi então que eu descobri que a palavra fulva queria dizer vermelha e achei muito bonita, mariposa fulva, inseto noturno arruivado. Acho que nada pode me definir melhor. Tenho impressão que é isso o que sou, uma mariposa fulva. Um inseto noturno arruivado e negro. Um lemingue que se afoga no oceano. Um comanche cujos bisontes se lançaram no despenhadeiro”.
Até então, eu nunca havia lido nada do Joca Reiners Terron, embora estivesse adiando minha curiosidade, A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves veio em boa hora. Assim que este livro chegou às minhas mãos, com uma das capas mais intrigantes que já vi de livros nacionais – quem já estudou design fica analisando essas coisas –, mergulhei numa leitura que a cada página ia me impressionando.
A princípio, o leitor se depara com um personagem-narrador. Ele vai apresentando sua vida, falando de sua insônia, de sua dupla jornada de trabalho: à noite na delegacia, como escrivão; durante o dia, no antiquário do pai, que já debilitado, precisa também do amparo do filho. A forma como ele descreve mescla presente e passado, o qual vai se revelando aos poucos, não de forma linear, como rege a cartilha da literatura pós-moderna. No capítulo seguinte, o leitor é colocado numa situação diferente, de maneira que chega a se imaginar num livros de contos, em que os fatos do primeiro capítulo parecem não estar interligados com os do segundo. A narração se torna em terceira pessoa, com um tom kafkaniano expressivo, revelando a vida da sra X., uma atípica enfermeira. Num casarão cercado por lendas, ela vive para tomar conta de um só paciente, uma criatura – é assim mesmo que o narrador se refere a ela –, com hábitos notívagos. É aí que a curiosidade é despertada, pois desde começo do capítulo fica evidente que vai acontecer alguma coisa, já que o leitor fica sabendo que por contrato, a sra. X jamais deveria sair de casa, mas por causa de um passeio noturno específico, a enfermeira quebra a regra. Uma terceira narrativa se junta às duas anteriores, a de um taxista extremamente apaixonado por cães; fechando assim uma interessante tríade, que culmina num final crescente – até mesmo poético –, mesmo diante da não linearidade do texto, como já comentei.
Além das tramas principais – as três que destaquei acima –, quatro subtramas – pode-se assim dizer – ainda chamam a atenção. Como se já não bastasse o mistério do casarão, o narrador insone, escrivão da delegacia, ainda recebe uma série de ligações estranhas, querendo falar com seu pai, para saudar uma dívida; permanecendo o mistério ao longo de quase todo o livro. O boliviano que trabalha no antiquário, mesmo com apenas uma fala no livro, constitui-se de uma história à parte, engraçada pela insignificância que representa ao narrador. As duas últimas, mais importantes, são a do entregador de compras, um coreano que entrega os alimentos e produtos de higiene à sra. X, oferecendo ao leitor uma visão do que se fala no bairro a respeito do casarão; e a última, talvez a mais espetacular, a do Leopardo-das-Neves, quase uma saga.
“Estou na delegacia, não ouço nenhum ruído nas celas e vejo sombras lá fora, viciados em crack que se esparramam pelas ruas. No entanto, não consegui repousar e ontem ainda é hoje, assim como anteontem continua a ser ontem. O passado está para acontecer. É agora, vai ser amanhã. A eternidade se concentrou num dia que não passa nunca. Tenho dúvidas se voltarei a dormir. Enquanto isso, vou permanecendo aqui. Aguardo a claridade restituir as frações do dia, seus minutos e segundos. Até o sol arrebentar contra o muro dos fundos da delegacia feito uma ambulância que perdeu os freios. Até que outra noite venha restabelecer a ordem”.
Citei uma série de características que me fascinaram neste livro, mas ainda há outra a se destacar, o cenário, de modo geral. Se analisado o mote da história, certamente, a maioria dos escritores não a ambientaria em São Paulo; em minha concepção. Nossa formação literária, tão anglófana, condenar-nos-ia ao lugar comum. Terron fugiu disso e teve êxito. Que mais escritores ambientem suas histórias no Brasil, embora sem recorrerem a um apelo bairrista, desnecessário; apenas alcançando a universalidade a partir de sua aldeia, parafraseando Tolstói.
Para encerrar, mais do nunca fiquei com vontade de ler outros livros do Joca Reiners Terron, mais um ótimo nome da literatura brasileira contemporânea. A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves ainda está levantando questionamentos em minha mente, brincando com minhas ideias. Durante a leitura, fiquei torcendo para o livro não acabar.
A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves/ Joca Reiners Terron. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2013.